A proposta do governo para rever a legislação laboral, a chamada Agenda do Trabalho Digno, ganhou ontem aprovação à primeira leitura e avança para discussão detalhada com a segurança da maioria absoluta socialista que limita cedências, mas com o benefício da dúvida de Bloco de Esquerda, Livre, PAN, PSD e Chega, que se abstiveram na votação do texto e ainda esperam impor alterações. Já PCP e Iniciativa Liberal votaram contra.
A agenda do governo, que abandonou a ideia de repor parcialmente o custo do trabalho suplementar e assume que as relações de trabalho em plataformas se possam estabelecer com entidades intermediárias e já não apenas com empresas como Uber ou Glovo, tem agora entre as principais mudanças a subida das compensações para dispensar contratados a prazo para 24 dias de retribuição por ano ou a limitação à sucessão de contratos de trabalho temporário para um máximo de quatro anos.
A oposição vê recuos e teme que, sem mais mudanças, os cortes da troika acabem "escritos na pedra" da legislação laboral. Já o governo vê uma agenda "forte" que "assenta em responder ao que os jovens procuram e não em remendar o passado", segundo a ministra do Trabalho, Ana Mendes Godinho.
Da antiga geringonça que sustentava a última legislatura, o PCP assumiu o chumbo à partida, pondo a tónica, sobretudo, na questão da caducidade de convenções coletivas, que segue inalterada e foi divisiva no desacordo que deitou orçamento e governo ao chão no final do ano passado. "Só uma legislação que retome a sua natureza de proteção da parte mais débil na relação de trabalho é compatível com uma perspetiva progressista e com o desenvolvimento económico e social", defendeu a deputada comunista Diana Ferreira.
Já o Bloco de Esquerda cedeu a abstenção com um repto: "O desafio fica feito ao Partido Socialista para voltar à formulação inicial e para repor na proposta de lei o que estava no Livro Verde sobre o Futuro do Trabalho".
Está em causa a ideia inicial do governo para regulamenntar as relações de trabalho nas plataformas digitais. O objetivo, em projeto de diploma que chegou a consulta pública, era que a lei passasse a presumir, com base numa série de indícios ligados ao modelo de operações digitais das plataformas, a existência de contrato entre estas e os seus estafetas ou outro tipo de trabalhadores. Agora, o governo coloca em cena outras entidades singulares ou coletivas que operem na plataforma como possíveis empregadores, e limpa os tais indícios de alusões a algoritmos e geolocalização de trabalhadores, próprios do funcionamento das aplicações detidas pelas plataformas.
Na prática, dificulta que a relação de emprego venha a ser estabelecida com as plataformas diretamente, segundo defendeu já Teresa Coelho Moreira, perita chamada pelo governo a preparar as mudanças nas leis laborais numa fase inicial, com o chamado Livro Verde sobre o Futuro do Trabalho.
O Bloco acusa o recuo e sugere cedências aos lóbis das plataformas, mas diz também que não desistiu de uma reversão da proposta do governo à fórmula original.
Já o governo diz que lhe é indiferente que os contratos dos trabalhadores sejam estabelecidos diretamente com as plataformas digitais ou com intermediários - fórmula que, aliás, é a que foi adotada no setor TVDE, das app de transporte de passageiros, legislação que permanece em revisão sem que se conheça neste momento quais as intenções do governo, nem como será articulada com as mudanças em sede do Código do Trabalho.
"Para nós, é indiferente saber se são as plataformas ou os intermediários. Aquilo que queremos proteger são os direitos daqueles que nelas operam enquanto trabalhadores", afirmou Miguel Fontes, secretário de Estado do Trabalho.
As diferenças face à proposta inicial avançada pelo governo foram justificadas pela ministra Ana Mendes Godinho com "dúvidas sobre se todos os trabalhadores estavam cobertos". Mas a governante não fechou a porta a alterações pontuais. "Podemos melhorar qualquer redação que não tenha ficado clara", disse.
Esta não é, no entanto, a única mudança procurada pelos partidos à esquerda do governo, que levaram 17 projetos de lei para ir mais longe. Quatro deles, do PCP, caíram já ontem em votação. Mas outros oito do Bloco de Esquerda, dois do Livre e dois do PAN baixaram a comissão sem votação, por decisão unânime do parlamento. Aprovado, entretanto, ficou o projeto de 20 dias de faltas justificadas em situações de luto gestacional, do PAN. PS, PSD e Chega abstiveram-se com os restantes partidos a darem o sim inicial ao texto.
Os oito projetos do BE insistem na revogação dos chamados cortes da troika, propondo mexidas nos dias de férias, valor das horas extra, valor das compensações por despedimento, trabalho por turnos e noturno, no reconhecimento do direito de impugnar despedimentos ilícitos mesmo após aceitação de compensação, nas 35 horas semanais, no fim da caducidade unilateral dos contratos e na reposição do princípio do tratamento mais favorável.
A proposta do governo, "ao não tocar nos cortes da troika, inscreve-os na pedra da lei laboral", defendeu o deputado José Soeiro.
O Bloco segue acompanhado pelo Livre na proposta de 35 horas semanais de trabalho, que o partido de Rui Tavares vê como um passo em direção à semana de quatro dias. O Livre avança também com um projeto para levar as licenças parentais aos 360 dias e deixou a promessa de acompanhar "também propostas do PCP, do Bloco de Esquerda e do PAN na área da caducidade das convenções coletivas de trabalho, na área dos direitos dos trabalhadores das plataformas ou na área do luto gestacional, porque achamos que estão aqui contributos essenciais para elevar a dignificação dos trabalhadores em Portugal".
O PAN, por seu lado, absteve-se na votação de uma proposta de governo que considerou "tímida" e sem avanços na igualdade de género. "Falar hoje, em pleno século XXI, de trabalho digno não pode deixar de fora os direitos das mulheres", defendeu Inês Sousa Real, que propõe o alargamento das faltas justificadas a dores menstruais incapacitantes e devidamente atestadas. Além disso, o PAN defende uma licença parental inicial de 183 dias.
Da parte do PSD, não houve propostas além das críticas a uma ausência de acordo de Concertação Social que suporte as mudanças. Mas o partido fez menção de uma "oposição construtiva" pela voz da deputada Clara Marques Mendes.
O Chega cedeu a abstenção sem justificar, depois de criticar o facto de o governo ainda não ter implementado medidas laborais legisladas em 2019.
O voto contra da Iniciativa Liberal, por sua vez, deve-se à ultrapassagem de duas "linhas vermelhas", segundo o deputado Rui Rocha: o reforço de poderes da Autoridade para as Condições do Trabalho e uma provisão sobre exercício de atividade sindical em empresas que não têm sindicalizados.