A Provedora de Justiça, órgão de defesa dos direitos e garantias dos cidadãos, voltou no ano passado a lidar com um número recorde de queixas, mais de 21 mil, e de processos, numa tendência que, diz, ameaça tornar-se "insustentável" e pôr em causa a capacidade de resposta.
"É minha convicção que o Provedor de Justiça está hoje perto de atingir limites que, a não serem evitados, trarão grande prejuízo para a instituição e para a comunidade que ela serve", avisa a Provedora Maria Lúcia Amaral, no último relatório anual de atividade remetido ao parlamento, divulgado nesta sexta-feira. No documento, defende que "é praticamente insustentável a manutenção desta situação". "Se o exponencial crescimento dos números [que relatei] não vier a ser contido, a partir de certa altura a instituição deixará pura e simplesmente de poder responder".
De acordo com os dados divulgados, chegaram no último ano à Provedora de Justiça 21 259 solicitações, com 18 394 aceites, num crescimento de 4%. Houve 12 219 novos processos iniciados, numa subida de 6% face a 2020.
A estes, somam-se mais de sete mil acumulados de anos anteriores, com o órgão a contabilizar quase 20 mil processos em instrução. Ao certo, 19 358.
A Segurança Social continua a ser o serviço público contra o qual mais queixas são feitas, sendo 27% do total (30% em 2020). Foram 3556 no último ano, primeiramente relacionadas com pensões (583), contribuições, dívidas e restituição de contribuições e prestações indevidas (505), situações de deficiência e incapacidade (445), parentalidade e prestações familiares (426), apoios extraordinários devido à pandemia (404), e situações de desemprego (401).
Destaca-se o forte crescimento das queixas relacionadas com abonos de família. Eram apenas 180 em 2020, passando aos 426 processos abertos em 2021.
Mantiveram-se também ainda elevadas as queixas quanto aos apoios criados para resposta à pandemia, embora em número inferior às de 2020. Estas "incidiram sobre alguns dos apoios extraordinários criados para o efeito, em especial, sobre o respetivo âmbito de aplicação pessoal, as condições de atribuição, o cálculo, o montante ou o atraso na sua atribuição".
A atuação do fisco é o segundo principal motivo de queixa dos cidadãos que recorrem à Provedora, sendo visada em 10% dos processos aceites (13% no ano anterior). A fiscalidade originou 1147 novos processos, estando em maior número aqueles que eram relacionados com execuções fiscais (396), IRS (223), tributação automóvel (108), taxas de portagem (96), tributação do património e imposto de selo (64) e alfândegas (49).
Os assuntos económicos e o emprego público são, após a Segurança Social e o fisco, as áreas com maior percentagem de queixas, ambas em 8%. Os processos relacionados com assuntos económicos envolvem, maioritariamente, transportes, fundos de apoio à cultura, banca, fundos de apoio a empresas, e comércio.
As queixas de funcionários públicos e de outros trabalhadores de entidades públicas deram origem a 1515 processos em 2021. O principal motivo de queixa prende-se com as relações de emprego público, envolvendo carreiras, salários, processos de recrutamento, vínculos, situações de mobilidade, entre outros aspetos.
As relações laborais públicas deram origem a 930 processos, mais do dobro daqueles que foram originados com queixas relativas a relações de trabalho no sector privado (452).
No relatório anual, a Provedora alerta não apenas para a insustentabilidade dos números, como também para o que diz ser uma "complacência acrítica face a este estado de coisas".
"Que o Provedor de Justiça sirva para compor litígios em casos concretos, dispensando a cada cidadão que se lhe dirija um meio informal, célere e eficaz de resolução de cada problema, é princípio cuja validade se não discute. Mas que a instituição faça dessa função o cerne largamente maioritário de toda a sua atividade, basicamente a ela se resumindo e nela se consumindo, é já algo que, no plano dos princípios, me parece inaceitável", defende, recordando o estatuto do órgão que lidera e também as restantes atribuições que este tem. Designadamente, na defesa de direitos humanos e na prevenção da tortura.