A falta de veículos novos para entrega imediata, que consequentemente leva à falta de usados seminovos para venda no mercado nacional, está a afetar igualmente o segmento dos veículos elétricos. Segundo informações recolhidas junto da direção da Associação de Utilizadores de Veículos Elétricos (UVE), "a demora nas entregas de veículos novos é um desafio para os novos utilizadores que pretendam beneficiar do incentivo de aquisição (Incentivo pela Introdução no Consumo de Veículos de Emissões Nulas 2022), gerido pelo Fundo Ambiental, visto que os veículos elegíveis para essa ajuda têm de ser matriculados este ano e as candidaturas encerram a 30 de novembro de 2022". Porém, a associação afirma que, apesar destes constrangimentos, todos os produtos 100% elétricos estão vendidos, e a maioria das marcas compromete-se com prazos de entrega entre seis a 12 meses. Já Rodrigo Ferreira da Silva, presidente da Associação Nacional do Ramo Automóvel (ARAN), vai mais longe e fala mesmo em 18 meses, em média, de espera na entrega deste tipo de viaturas.
Para fazer face à crescente procura nacional de veículos elétricos, a importação de automóveis usados tem aumentado a bom ritmo (bem como a importação de automóveis a combustão). As contas da UVE, numa recente análise ao setor, mostram que os veículos elétricos importados usados representam cerca de 30% do mercado dos elétricos em Portugal. "Embora este tipo de veículos usados não seja elegível para o benefício do incentivo do Fundo Ambiental, os veículos 100% elétricos usados continuam a beneficiar da isenção do ISV - Imposto Sobre Veículos e do IUC - Imposto Único de Circulação", afirma a direção da UVE.
Contudo, a mesma associação esclarece que, "embora exista demora na entrega de veículos, é ainda possível encontrar marcas com carros disponíveis para entrega imediata, e isso é visível pelas vendas que têm tido um crescimento muito expressivo". Assim, em julho último, venderam-se 2649 veículos 100% elétricos e híbridos plug-in novos, uma diminuição de 12% face ao mês de junho, sendo que os automóveis 100% elétricos foram mais penalizados pela falta de veículos, com uma quebra de 21%. Mesmo assim, o mercado dos elétricos aumentou 61,5% face ao mesmo mês de 2021, o que, segundo a associação, mostra que, se existissem mais veículos, estariam certamente todos vendidos. Desde o início deste ano foram vendidos quase 19 mil veículos das duas tipologias, uma quebra considerável face a 2021, ano em que se venderam quase 30 mil.
Outra questão que fontes do setor estão a reportar é que, devido aos atrasos na entrega, quem quer beneficiar dos incentivos do Ministério do Ambiente, que atinge os 4 mil euros no caso dos ligeiros de passageiros 100% elétricos, num valor máximo de aquisição de 62 500 euros, há clientes que, perante o atraso e, uma vez que ultrapassado o prazo de candidatura, pedem para entregar e faturar o veículo só no próximo ano, na esperança de poderem assim candidatar-se logo no início.
Sérgio Mendes e Telmo Azevedo, ambos da direção da UVE, afirmam que, de facto, têm conhecimento de que vários utilizadores estão a fazer esse pedido aos vendedores, mesmo sem se saber se haverá incentivos no próximo ano. "Como muitos vendedores querem faturar já este ano, há duas situações em curso: uns dizem aos clientes que, assim sendo, perdem a vez na chegada do stock - pois conseguem entregar esse carro a quem o queira já este ano - ficando na lista de espera para o próximo ano. Outros aplicam um desconto (idêntico ao de frota), igual ao valor do incentivo, para fazerem a venda do veículo ainda este ano", esclarecem os dois responsáveis.
Candidaturas para incentivos de ligeiros já atingem as 1730
Apesar de ainda estarem a decorrer, as candidaturas para o Fundo Ambiental no segmento dos ligeiros de passageiros já ultrapassaram largamente o número de incentivos a atribuir. O Estado tem disponíveis 1300 incentivos, num valor máximo de 5,2 milhões de euros, e as candidaturas já ascendem a 1730, ainda que só 481 tenham sido aprovadas, estando 1193 por avaliar. No caso dos ligeiros de mercadorias 100% elétricos (incentivo de 6 mil euros), apenas estão disponíveis para 150 veículos, num valor máximo de 900 mil euros, já foram apresentadas 229 candidaturas e apenas 84 já aceites. Questionada a UVE sobre se ainda valia a pena apresentar mais candidaturas, os responsáveis esclarecem que, como existe um valor de incentivos a atribuir às candidaturas em lista de espera por verba esgotada ou fim de prazo, o valor do acumulado não atribuído nas restantes tipologias será distribuído pelas candidaturas em lista de espera.
Já Hélder Pedro, secretário-geral da Associação do Comércio Automóvel de Portugal (ACAP), refere que já há cerca de 400 modelos de elétricos disponíveis no mercado nacional, o que quer dizer que esta é uma solução que se está a impor. "Porém, tem de haver mais incentivos para a mobilidade elétrica. Os incentivos para os ligeiros de passageiros passaram para 4 mil euros, mas em Espanha, França e Itália é de 6 mil, 7 mil, 8 mil. Na Alemanha é de 9 mil euros, explica. Apesar da diferença de incentivos, os preços de venda desses veículos são idênticos em todos os mercados europeus, sendo que o poder de compra destes países é muito diferente do nacional. "Os elétricos puros são cerca de 10,5% do mercado, tem vindo a evoluir e vai continuar nos próximos anos. Atualmente, somos o 9.º país em termos de percentagem, mas já estivemos em 4.º, pois os outros países puxaram pelo aumento de incentivos e Portugal estagnou".
Elétricos trazem profundas mudanças nos modelos de negócio
O modelo de negócios da distribuição está a mudar com o advento dos veículos elétricos. Estudos como o Global Automotive Executive Survey 2021, realizado pela consultora KPMG, mostram que os executivos acreditam que haverá uma profunda mudança na forma como os consumidores adquirem os seus veículos: a maioria das vendas será feita online até 2030, e cerca de 40% dos veículos serão comercializados diretamente pelos fabricantes, dispensando assim intermediários.
Esta profunda revolução no setor já começou e os concessionários estão a começar a perceber as mudanças que aí vêm. Muitos são os desafios que enfrentam, e que poderão, eventualmente, não conseguir acompanhar. Fundada em 2003, para produzir veículos elétricos, a Tesla revolucionou o mercado ao vender os seus automóveis diretamente ao consumidor final. Foi o princípio do fim da distribuição tradicional, com um modelo que se mantinha há décadas.
A pandemia acelerou a transformação que já se fazia sentir: fabricantes perceberam que podiam vender diretamente online o seu produto, tomando para si toda a cadeia de valor. Além disso, há outros protagonistas, fora deste universo, a entrar no mercado: Fnac e Worten, por exemplo, já iniciaram a venda de automóveis, em modelo de renting, acreditando que, no futuro, os veículos se venderão sobretudo no canal digital e em modelos de subscrição mensal.
Alguns dos maiores fabricantes automóveis já anunciaram a venda direta do segmento de elétricos, como a Volvo; outros dispensaram já boa parte dos seus concessionários, como a Renault; e outros ainda anunciaram que criaram um novo formato de distribuição, o modelo de agência, como a BMW e a Mercedes Benz. Neste último formato, os atuais concessionários atuam como um agente de vendas - um pouco à semelhança das imobiliárias -, em que o fabricante estipula o preço final, assume os riscos financeiros e de investimento, sendo o distribuidor um mero intermediário, cobrando as suas comissões. O Grupo Stellantis, por exemplo, dirigido pelo português Carlos Tavares, e que aglutina atualmente 14 marcas, como a Citroen, a Fiat, a Opel e a Peugeot, rescindiu já todos os contratos de concessão, estando os atuais distribuidores à espera das novas condições de revenda impostas pelo grupo. Questionadas algumas fontes do mercado referiram ainda não ter acesso aos novos acordos, outras afirmaram que estes já estariam a ser apresentados aos concessionários, embora ainda no segredo dos deuses.
Relativamente aos novos contratos de distribuição a serem apresentados por alguns dos maiores fabricantes mundiais, Rodrigo Ferreira da Silva, da ARAN, deixa um alerta: há grupos a proporem modelos de agenciamento ilícitos, ou seja, as marcas mantêm o controlo dos preços de revenda, mas o risco mantém-se do lado dos concessionários. "Muitos desses contratos, em termos jurídicos, são falsos contratos de agência. O contrato genuíno é quando todo o risco do negócio é do fabricante. O que está a acontecer é o melhor dos dois mundos para o fabricante: controlam tudo, mas as concessões continuam a ter os encargos com as equipas, com as instalações, etc.", explica o responsável.
A CECRA, associação europeia das empresas de distribuição e reparação, emitiu um comunicado no qual, além de denunciar a situação a nível europeu, explica que, apesar de ser legítimo alterar as condições de distribuição - foi revisto no ano passado o regulamento da distribuição automóvel, o chamado Block Exemption -, os novos contratos desenhados têm de prever que o modelo de negócio dos concessionários se mantém economicamente viável.
Também Roberto Gaspar, secretário-geral da Associação Nacional das Empresas de Comércio e Reparação Automóvel (ANECRA), refere que os desafios na distribuição automóvel são, neste momento, mais do que muitos. Afirma que os contratos de agenciamento são legítimos, enquadrados no novo regulamento europeu para a distribuição automóvel, mas, pelo meio, "foram surgindo várias tonalidades de agenciamento. Há agenciamento puro e agenciamento onde se prevê que o agente passe a fatura ao cliente final, o que resolve alguns problemas da venda direta, como é o caso do financiamento automóvel".