A algaraviada do Procurador Geral do Regime sobre a "abolição" da Polícia da Moralidade

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Nos últimos dias e, quase em simultâneo com 3 dias de greves e protestos um pouco por todo o Irão, boa parte dos Media internacionais e nacionais esqueceram o rigor jornalístico e embarcaram na onda que anunciava a "abolição" da "polícia da moralidade". Tudo terá começado com as declarações do Procurador Geral Jafar Montazeri. Mas o que disse, afinal, Montazeri?

"A polícia da moralidade não tem nada a ver com o sistema judiciário. A mesma fonte que a criou no passado, é a mesma que a fechará. Mas, é claro, que o sistema judiciário continuará a sua vigilância de comportamentos sociais em toda a sociedade." (4.12.2022)

Sim: é isso mesmo. São declarações vagas e imperceptíveis. Confirmei várias vezes, em várias fontes e línguas e vai tudo dar a esta tradução. Mas se quanto ao real significativo desta algaraviada não há grande luz alguns factos, esses pelo menos, são claros:

1. Montazeri não é o líder da Polícia da Moralidade.

2. Montazeri não diz "quem" vai acabar ou suspender (nem isso é claro) com esta Polícia, nem o "como", nem sequer o mais importante: que é o "quando".

3. Montazeri não diz que vai parar de continuar a executar a Sharia (Lei Islâmica) no Irão que esta polícia aplica nas ruas da forma tão violenta que levou à morte de Mahsa Amini.

Não faz assim sentido que alguns Media tenham decidido interpretar estas palavras no sentido "O Irão vai abolir a polícia da moralidade" como ainda há dias a Euronews espalhava numa breve peça que passou por toda a Europa. É provável que todos tenham copiado um artigo do New York Times confiando que este tinha feito o trabalho de casa e verificado as suas fontes mas, de facto, não foi isso que aconteceu e, por alguma razão isso faz-me lembrar o caso de Artur Baptista da Silva que em 2012 foi publicamente desmascarado enquanto fazia-se passar por economista, professor de uma universidade americana que não existia, consultor da ONU e do Banco Mundial e isso depois de ter enganado o Expresso, assim como vários outros jornais e televisões. De novo, neste mundo rápido, onde as notícias são produzidas quase em tempo real, por equipas cada vez mais reduzidas, com cada vez menos tempo e menor senioridade, tornamos a ter um Artur Baptista, mas desta vez iraniano e agora no prestigiado New York Times.

Bem sei que a notícia original pode ter nascido da vontade de exprimir algum optimismo quanto ao desfecho de uma revolução que começou na defesa dos direitos das mulheres contra um regime obscurantista e que agora se estendeu a todas as outras falhas do governo tais como as perseguições às minorias étnicas, a corrupção generalizada, a crise económica provocada pelas sanções e pelo desperdício de milhões no apoio a guerras civis no estrangeiro e no apoio a regimes tirânicos como o russo ou o sírio, à inflação e ao desemprego jovem crónico e sem solução à vista.

Depois das declarações "bombásticas" de Montazeri nada mais foi dito pelo regime, o que confirmou que, de facto, a polícia da moralidade não só não acabou como - pela vontade de quem manda no Irão - não irá acabar tão depressa. Há, contudo, uma possibilidade: à medida que os protestos entram no seu segundo mês começam a verificar-se fracturas no regime e não é impossível que alguns dos seus dirigentes na ânsia de preservarem os seus privilégios e riqueza procurem salvar o seu poder oferecendo concessões aos manifestantes e grevistas. Montazeri pode ter tentado liderar uma corrente dentro do regime que defende a continuação do poder através de uma série de concessões controladas como a abolição do hijab e a suspensão da polícia da moralidade. Mas ainda que seja isso, parece certo (porque as declarações foram feitas a 4 de dezembro e depois, logo no dia seguinte arrancava uma vaga de greves e protestos nacionais) que isso não funcionou. Se Montazeri lidera um grupo de "moderados", se fez um "teste social" para ver se essas eventuais cedências poderiam desarmar os protestos: pois bem: não funcionou. Excepto em alguma imprensa ocidental.

(Nota: o autor escreve segundo o Antiogo Acordo Ortográfico)

Rui Martins, CpC - Cidadãos pela Cibersegurança

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