A caminho de uma nova globalização?

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A pandemia do Covid-19 tem características únicas porque combina de uma forma sem precedentes, intensidade, duração, extensão geográfica e divulgação online. Produziu ondas de choque, ampliadas pela contagem diária de eventos negativos, criando uma cultura do medo, a que adicionámos ansiedade e incerteza decorrente do desconhecimento. Sabemos que o medo altera os nossos hábitos e não regressaremos a fevereiro de 2020.

Isso não significa que tenhamos acordado num admirável mundo novo, onde todos os princípios e os básicos da sociedade e da economia estão totalmente alterados.

Um ambiente repetidamente classificado como de guerra com narrativas de sofrimento e heroísmo, criaram a oportunidade para uma maior empatia, partilha e medidas para reduzir a desigualdade. Em paralelo assistimos a movimentos favoráveis a uma certa auto-suficiência dos estados.

Antes do SARS-CoV-2 já existiam muitos adeptos da “desglobalização”. As preocupações com a regularidade do fornecimento de medicamentos, equipamentos médicos e de proteção, associados a alguma suspeita relativa às certificações de empresas chinesas, impulsionaram as teses de uma maior autonomia nacional das cadeias de abastecimento.

Até hoje, para maximizar a eficiência, a Europa procurou por todo o mundo o fornecedor de menor custo, todavia comprometeu a resiliência e a diversificação. É provável que as empresas venham a ponderar melhor os riscos de uma cadeia global, optando por outras mais locais e menos vulneráveis, particularmente onde a redução das distâncias tenha um peso importante no custo do produto.

Num momento em que as capitais nacionais ganharam influência sobre as instituições da UE, fecho de fronteiras, implementação de medidas de controlo de movimentos e a tendência crescente de vermos o outro como estranho ou perigoso, cria-se um risco real de exploração do medo. Não podemos aceitar restrições protecionistas sob o disfarce de auto-suficiência e saúde pública.

Como devemos, então, equacionar o futuro e criar soluções exequíveis, que ultrapassem os discursos de circunstância e a astrologia económica? Primeiro, pensar! E seguindo princípios orientadores refletir sobre o que fazíamos, mas passámos a fazer de modo diferente. Percebemos por exemplo que o just-in-time é muito eficiente, mas não acomoda uma gestão de risco para situações desta proporção. Um pouco mais de just-in-case, redundância e diversificação são aconselháveis em sectores chave.

Do que passámos a fazer de modo diferente, o que deveremos continuar a fazer e o que não deveremos continuar. Há três termos que emergem como vencedores – ágil, digital e resiliente – que nos podem ajudar nesta reflexão.

Finalmente definir aquilo que nunca mais deveremos voltar a fazer. Que podemos retirar desta crise como oportunidade para um melhor modelo de desenvolvimento?

Muitos se tem falado na reindustrialização da Europa. Todavia, os movimentos da actividade industrial são o resultado de uma complexa interacção multifactorial no cenário macroeconómico mundial, e qualquer argumento de uma reindustrialização europeia com refluxo em massa das capacidades instaladas na Ásia, é irrealista, inútil e demagógica.

Esta reindustrialização terá de seguir uma abordagem integrada, desde a eficiência energética e neutralidade climática, ao recurso a novas tecnologias e suficiência em áreas-chave, capaz de impulsionar o relançamento europeu.

Ao contrário de outras crises, a recessão é consequência das medidas de contenção sanitárias e por isso políticas anteriores de estímulo de procura, não podem ser tomadas enquanto não houver estabilização da epidemia e da confiança. Não podemos também ignorar que os países sairão muito endividados desta crise, com aumento dos défices públicos. Seremos forçados a definir rapidamente sobre os investimentos que produzem resultados de forma mais eficiente. A área da saúde é uma das que melhor se posiciona para contribuir para a recuperação económica.

O recém apresentado Fundo de Recuperação da União Europeia que prevê a distribuição de 750 mil milhões de euros, define justamente a saúde com um dos seus “três pilares”. Numa perspectiva abrangente, estão previstos investimentos de reforço da segurança sanitária e preparação para responder a futuras crises, mas também para financiar a investigação na área da saúde.

Esta realidade leva a que indústria farmacêutica se possa constituir como alavanca importante, porque disponível, para incentivar a actividade económica, no mais curto prazo. Mas é fundamental que este investimento passe por uma aposta determinada na inovação e no desenvolvimento de tecnologias facilitadoras.

Portugal, particularmente, precisa de uma indústria farmacêutica com massa crítica, capacidade de inovação e dimensão industrial. Precisa de estratégias baseadas em clusters, majoração dependente do nível de integração e da realização de consórcios, que poderão permitir saltos exponenciais de escala, facilitadores da nossa capacidade de internacionalização. E, fundamentalmente, a indústria farmacêutica tem de ser percebida como solução e não como um problema de custos.

A Europa não pode permitir a passagem de uma globalização centrada nos EUA, por perda de fé no comércio internacional, para uma globalização centrada na China, e perder uma oportunidade para reganhar relevância.

E como nos desafiou José Tolentino Mendonça, que a União Europeia não termine como um monumental museu de boas intenções que se afunda, e esta seja precisamente a estação do seu relançamento.

*Vice-presidente do Grupo Tecnimede

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