Dificilmente alguém que seja capaz de ler neste idioma não conheça um cantor brasileiro chamado Djavan. Ele é um dos principais compositores e intérpretes da música popular brasileira. Uma de suas músicas, de uma lista infindável de sucessos, chama-se Flor de Lis. A letra retrata um amor destruído que acaba na poeira, de onde nada mais será capaz de brotar. Embora triste, é embalado no brasileiríssimo género samba-canção, o que empresta um clima de leveza à tragédia. Sabiamente Djavan abre a música com um pedido: “Valei-me Deus!”.
As coincidências com o que vou relatar adiante acabam nessa frase: Valei-me Deus! Embora a personagem central atenda por Flordelis.
No Brasil - ahh o Brasil! - temos uma figura pública chamada Flordelis dos Santos de Souza. Cantora gospel e pastora evangélica, ficou conhecida, também, por adotar crianças de comunidades carentes. Como resultado, mais de 190 mil moradores do Rio de Janeiro - ahh o Rio de Janeiro! - a elegeram deputada federal, no esteio do crescimento evangélico na política do país. Ela é dona de uma igreja que possui oito templos e sempre divulgou ser “a família o meu bem maior”.
Flordelis tem 59 anos e quase um filho por primavera vivida. São 55 filhos. Isso mesmo, você leu certo, 55 filhos. Apenas quatro deles biológicos – três com o primeiro marido e um com o pastor Anderson do Carmo, “presidente” de sua igreja. Só esse facto já a transformaria num case a ser estudado - para o bem ou para o mal. Se fosse só isso, já seria complexo o bastante, mas essa é apenas a fumaça do café, a parte que cheira bem. Há muito mais dentro do coador e é preciso ter estômago para encarar.
Fortes evidências ligam a deputada e membros de sua família, nomeadamente seus filhos, ao assassinato de seu marido Anderson. O que você entende por marido pode ser um conceito diferente, você vai perceber. E a tal “família” que ela citava como “bem maior”, foi rebatizada pelo delegado de polícia Allan Duarte - que está à frente das investigações sobre o assassinato de Anderson -, como “organização criminosa”.
Anderson do Carmo, o marido assassinado, era um dos filhos adotados por Flordelis, até virar marido - foi, digamos, um upgrade na instituição. Entretanto, durante muito tempo foi apresentado como genro de Flordelis - por conta de seu relacionamento com Simone, filha biológica do primeiro casamento da deputada. Simone viraria enteada de Anderson, quando ele se junta à mãe dela. Enteada do ex-namorado. Estranho, não? Mas é a mais nua, crua e sangrenta realidade.
Por falar em irmãos, Simone havia sido casada com outro irmão: André Luiz de Oliveira, também adotivo de Flordelis. Parece ser bem “acolhedor” aquele lar. Quase todos estão envolvidos na morte do filho-genro-marido de Flordelis. Simone, a filha legítima, que já foi mulher de Anderson, tem uma filha adotiva chamada Rayane Silva que teria enviado mensagens a uma de suas tias – filha de Flordelis – a pedir o “contacto de algum bandido” para matar o marido da avó, portanto seu avô, ex-namorado da mãe e atual padrasto dela. É tanta bizarrice num mesmo lugar que chega a dar nó na cabeça. Se fosse um roteiro de filme, seria recusado por ser tão inverosímil.
Há quem diga, nas redes sociais, que aquele lar mais parecia a casa de Calígula - imperador romano dado a incestos com suas irmãs, adoração a divindades às quais ele próprio acreditava incorporar, assassinatos cruéis, entre outras práticas nada estranhas ao lar de Flordelis. Confesso que não encontrei melhor definição. Fiquei entre essa e Jogos Mortais, achei essa mais apropriada.
Flordelis apareceu na média quando adotou 37 crianças “que fugiam de uma chacina ocorrida na Central do Brasil, no centro do Rio de Janeiro”, em setembro de 1994. Segundo relato dela mesma, as crianças, entre elas 14 bebés de colo, chegaram à sua porta naquela madrugada e pediram abrigo, era a favela do Jacarezinho. Uma atitude louvável que parece mesmo de amor à adoção, mas que mudaria a vida de Flordelis com uma hiperexposição mediática mais adiante.
Ela passou a vender a imagem de uma mulher altruísta, com um coração de uma Madre Teresa de Calcutá, e espírito protetor de uma mãe judia. Ganhou tanta notoriedade que sua história virou filme com um elenco de atores famosos no Brasil. Ela é uma farsa, como quase tudo o que a rodeia. Basta ouvir duas ou três frases dela, sempre desconexas, para notar.
Anderson sofreu seis tentativas de assassinato por envenenamento com arsénico. Todas elas empreendidas por seus irmãos/enteados, a mando de Flordelis, sua mãe/sogra/esposa segundo as investigações do Ministério Público do Rio de Janeiro. A Polícia Civil já encarcerou cinco filhos de Flordelis (enteados do assassinado), uma neta e mais quatro pessoas envolvidas no crime. O pastor foi executado com mais de 30 tiros na garagem da casa do casal em Niterói, Rio de Janeiro.
Ele era odiado por parte dos filhos e passou a ser, também, pela mulher. As investigações relatam que ele cuidava com mão de ferro do gerenciamento financeiro familiar. Desde o caixa dos oito templos pertencentes ao casal, à distribuição do alimento dentro de casa. Numa das mensagens descobertas pelos investigadores, Flordelis diz a um dos filhos: “André, pelo amor de Deus, vamos por um fim nisso. Me ajuda. Cara, 'tô te pedindo, te implorando. Até quando vamos ter que aguentar esse traste no nosso meio?” Em outra mensagem, onde aparentemente tenta justificar o assassinato, ela diz: “Fazer o quê? Separar dele não posso, porque senão ia escandalizar o nome de Deus”.
Hoje é possível rever esse enredo com contornos de delírios e maquinações da maldade. Tudo parece ter sido feito por dinheiro e poder. Flordelis tentou a carreira política em outras oportunidades, primeiro como vereadora de São Gonçalo, sem sucesso. Depois tentaria disputar a prefeitura dessa cidade - um subúrbio pobre do Rio de Janeiro - e chegou a ter seu nome como pré-candidata, mas não conseguiu levar adiante. Finalmente seria eleita deputada federal como a mulher mais votada do Rio de Janeiro em 2018.
O curioso é que ninguém nunca questionou como essas 37 crianças saíram a caminhar 11 km entre a Central do Brasil (estação de comboios localizada no centro da cidade do Rio de Janeiro) e a favela do Jacarezinho? É realmente muito distante para uma caminhada de crianças por avenidas perigosíssimas. A favela ainda hoje é um emaranhado de barracos, ruelas e casas amontoadas, imagine como era há quase 30 anos! Como essas crianças foram bater justamente na porta de Flordelis às 3.00? “Fue la mano de Dios”, diria Maradona.
Ressalte-se que entre as 37 crianças, 14 estavam sendo levadas no colo, eram bebés. Significa que as 23 outras crianças tiveram de carregar esses bebés por uma caminhada de 10 km madrugada adentro. Nem Moisés conseguiria tal proeza. Ok, posso estar imaginando chifre em galinhas, mas que é quase impossível, é.
Alguns relatos colhidos nas investigações, revelam que Flordelis praticava rituais macabros de iniciação religiosa com seus seguidores. Eles a tinham como uma divindade. Ficavam trancados incomunicáveis num quarto por sete dias a alimentarem-se apenas de arroz e legumes. Não viam ninguém, apenas ela, a deusa da pureza. Flordelis os visitava e praticava rituais que culminavam em sexo com ela própria, num ato de purificação. Valei-me Deus!
Agora entra a parte mais estranha, se tudo isso pareceu normal até aqui: ok que a mulher é louca e que sua família esteja envolvida até a tampa em suas doidices. Mas e esse povo que se aproxima deles, o que é isso? O que dizer dessas pessoas? E os que votam em gente assim? São eles os culpados de bizarrices como essas existirem. Eles as alimentam, são suas mais perfeitas oferendas. É o famoso “embromation” que dá certo, a tirar dinheiro de seguidores que esses grupos usam para ostentar uma vida bandida camuflada de generosidade. Não se é bandido só ao cometer crime, mas quando se desvia o dinheiro que compra remédios, que alimenta uma casa.
Esses líderes religiosos transformam seus rebanhos em povo cego, atrasado, negacionista e violento. Abusam da miséria cultural ali instalada e vendem a cura abstrata para tudo: uma doença, a falta de emprego, o homossexualismo! – que eles se referem de maneira pejorativa -, a esquizofrenia... Tudo isso que vendem como “obra do coisa ruim”, pode ser eliminado com um bom dízimo e pela oração interventora de bondades como a pastora Flordelis, dada sua proximidade com o Deus que salva. “Em nome de JESUS eu ordeno que todo mal saia do corpo dele!”
Flordelis foi eleita com mais de 190 mil votos. Se você a ouvir, constatará que ela é um ser medíocre, abaixo disso. Ela se expressa mal, repete as mesmas frases chave, não expõe um raciocínio lógico sobre nada e não tem conteúdo, é vazia, é chula, é vulgar. Dá vergonha alheia. Mas manda bem ao microfone para o seu público-alvo. Flordelis canta suas músicas evangélicas como um pássaro em ninho aquecido. O povo por ela catequizado vai ao clímax e ela aproveita, como os demais pastores pentecostais, para ser uma das representantes da Teoria da Prosperidade. “Quanto mais você der a Deus, mais receberá em troca.” Deus parece estar numa crise sem precedentes para estar de olho no dízimo de seres humanos aqui deste planeta.
Ela se tornou o que é com apoio não apenas de sua claque desnutrida de sinapses, mas de líderes evangélicos que lhe deram espaço em rádios, em canais de tevê evangélicos, em eventos em estádios lotados. Flordelis é um retrato bem acabado desse movimento: atrasado, preconceituoso, com jogadas políticas obscuras em diversas esferas do poder público, ligados a fações criminosas e sempre de olho no dinheiro dos fiéis. Abusam da imagem de fraternidade mas fazem o sinal da arminha na mão em cultos religiosos – sinal usado por quem apoia o armamento da população no país - muito apropriado a quem defende a paz e o amor de Jesus.
Eles comercializam o trabalho de Deus. Vendem a cura, o emprego e a união dos casais. Vendem sempre. Não se busca ali a evolução espiritual, isso é coisa para rico budista. Mas, alto lá!, se há quem venda, é por existir quem compre e, pior, são capazes de eleger esses embustes, alguns de alto calibre. Flordelis é mais do mesmo, rasteira e vazia. Flordelis é o Brasil de hoje.
Valei-me Deus!