Em setembro de 2021, um grupo de 154 economistas e investigadores escreveu ao Supremo Tribunal dos Estados Unidos com dados, estatísticas e conclusões científicas sobre o impacto que o acesso ao aborto tem na determinação da participação económica e social das mulheres.."A pesquisa demonstra que o acesso ao aborto, de facto, afecta profundamente as vidas das mulheres ao determinar se, quando e em que circunstâncias elas se tornam mães, o que depois tem impacto nas suas vidas, afectando padrões de casamento, sucessos académicos, participação laboral e salário", escreveram os economistas..É que a argumentação em causa radica nesta questão. O aborto foi legalizado a nível federal nos Estados Unidos em 1973 pelo direito constitucional à privacidade individual da mulher na escolha e fez enorme diferença nos últimos cinquenta anos, permitindo avançar a participação económica e académica das mulheres nos Estados Unidos - especialmente junto das populações mais encarecidas..Todo este progresso está prestes a ser derrubado pela nova maioria conservadora do Supremo norte-americano, cortesia de Mitch McConnell e Donald Trump. No rascunho da decisão que deverá ilegalizar o aborto, o juiz do Supremo Samuel Alito escreveu que as vantagens da interrupção voluntária da gravidez estão agora a ser colhidas por "mulheres solteiras grávidas", o que no seu entender contradiz a opinião dos economistas e defensores do direito ao aborto sobre a justiça económica da medida..Alito considera que as atitudes para com mulheres solteiras que engravidam mudaram e fala de baixa médica e custos cobertos pelo seguro de saúde como benefícios generalizados, concluindo que não cabe ao Supremo avaliar o efeito do direito ao abordo na sociedade e nas vidas das mulheres..O rascunho da decisão é uma salada perigosa e cheia de contradições, que cita até um jurista inglês do século XVII que gostava de queimar mulheres na fogueira por bruxaria. Mas mesmo aquele argumento dos benefícios generalizados não faz sentido. Os Estados Unidos têm poucas protecções para grávidas e mães, e certamente não há benefícios de cuidados de saúde que se invejem. É um dos dois únicos países no mundo sem licença de maternidade. O outro é a Papua Nova Guiné..O Supremo não tinha sequer que tomar uma decisão integral sobre a constitucionalidade do direito ao aborto. A reversão de um precedente legal com cinquenta anos, suportado por evidências médicas vastas e consensuais, vai ter consequências arrasadoras..Os republicanos já falam de legislação codificando o estatuto de um feto como pessoa a partir da concepção, e há receios fundados de que este dominó provoque uma derrocada. O que será da contracepção? Dos dispositivos intra-uterinos? Da pílula do dia seguinte? Da fertilização in vitro?.Mais, a abolição do acesso ao aborto a nível federal fará com que a decisão retorne aos estados, mas Mitch McConnell, que se presume que retome o controlo do Senado após as intercalares, não põe de parte uma ilegalização a nível nacional. Chocante é também a existência de legisladores tão radicais que não aceitam sequer a prática ginecológica do aborto para salvar a vida da mãe. É uma desvalorização flagrante da mulher grávida como pessoa de direito pleno, como pessoa cuja vida tem valor..As repercussões sociais e económicas disto serão catastróficas, num país onde só se têm acentuado as clivagens económicas e as comunidades de cor são prejudicadas por racismo estrutural..Este foi um dos pontos que ouvi repetidamente na marcha "Bans off our bodies", que levou cerca de 50 mil pessoas à baixa de Los Angeles no último fim-de-semana. A proibição do aborto é vista como uma ferramenta de controlo das mulheres e uma forma de garantir que as camadas mais pobres continuam pobres e a desigualdade se perpetua..Não tem absolutamente nada a ver com a vida ser sagrada - ou os anti-aborto também seriam anti pena de morte e anti metralhadoras nas mãos de qualquer um, e não são. Mais, recusam-se a dar apoios económicos a grávidas carenciadas, não aceitam cuidados de saúde universais, negam subsídios para pôr as crianças em creches e nem sequer lutam pela reforma do sistema de acolhimento de crianças que são abandonadas ou ficam órfãs..O fanatismo religioso até pode ser a justificação de superfície, mas na raiz está o poder económico - quem o tem continuará a ter acesso ao aborto, quem não o tem nunca conseguirá sair do ciclo vicioso.