A ética do umbigo

De médicos, poetas e de loucos todos nós temos um pouco. E de juízes também. Confundimos “discernir” com “julgar” habitualmente.
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Queremos que o mundo caiba nas nossas individuais tábuas de mandamentos. Achamos que o termo “ética” é um mero sinónimo da palavra “umbigo”.

Sempre fomos assim. Mas as redes sociais escancaram a questão. Antes delas, os blogs e as caixas de comentários de jornais já tinham amplificado o fenómeno. Afinal, para surpresa de muitos, todos nós temos opiniões. E, via de regra, nunca concordamos a 100% com os outros.

Sempre que acontece um evento traumático de natureza planetária o enredo repete-se: antes mesmo dos factos serem apurados, as versões propagam-se, à velocidade dos cliques, contaminadas pelo vírus da parcialidade.

Dentistas, donas de casa, estudantes, empregados de mesa, reformados, desempregados transformam-se instantaneamente em editores de jornais, cronistas, humoristas, opinion makers e, principalmente, evangelizadores das própria seitas e magistrados implacáveis.

Nesses momentos, ao babar certezas, as pessoas expõem os seus lados mais sectários, reacionários, preconceituosos, corporativistas. Todos temos essas coisas dentro de nós. São os nossos demónios. Os de boas intenções, os mais ponderados, lutam diariamente para controlar essas bestas mas, não se engane, elas estão lá sempre à espreita.

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Umas das coisas mais tristes que acontecem nesses momentos é a desvalorização de uma determinada desgraça em relação às outras. “Os meus mortos são mais importantes do que os teus”, é o que se pode ler nas entrelinhas.

Outra é a contemporização histórica. É o querer mostrar sapiência e (falsa) ponderação ao apresentar o tempo como uma linha reta onde se alguém hoje foi assassinado nada mais é do que uma consequência natural e causal de algo que aconteceu há 100, 200, 500, 1.000 anos.

Nos dois exemplos acima há o uso e o abuso da palavra “mas”. Ela é a chave para um qualquer entendimento do mundo. Funciona como um habeas corpus para qualquer alarvidade que venha a ser proferida. “Isto é assim mas...”

A melhor síntese que vi disto foi um simples cartoon, quase um meme, que mostra simpáticos cidadãos comuns numa esteira rolante que, ao fazê-los passar por dentro de uma máquina, transforma-os em carrancudos juízes.

Se falo deste assunto neste meu cantinho é porque esse comportamento não é exclusivo da leitura e interpretação das notícias. Também acontece em relação à comunicação comercial (vulgo, publicidade).

Ainda temos poucos casos nacionais, mas eles vão se multiplicar com o tempo. Trata-se de um fenómeno global que, quando acontece, faz que os consumidores transformem-se em algozes das marcas.

Nalguns casos com pouca ou muita razão, noutros nem por isso. A partir de um gatilho muitas vezes ligado ao politicamente correto ou aos brios de determinado sector da sociedade ou minoria, um anúncio é bombardeado ou uma marca é linchada em praça pública.

Examinar um mal não obriga-me a apontar a cura. Não sei como resolver o exposto. Sofro dos mesmos defeitos que aponto, sou parte do problema e não sei se da solução.

Mais do que nunca tenho que socorrer-me do que diria o meu Tio Olavo: “Cuidado com as flechas que atira para cima. Lembre-se de usar capacete”.

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