A GameStop pode mesmo valer mais do que qualquer empresa do PSI 20?

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Acho que não. E as forças ou intervenientes que levaram a GameStop a ter uma capitalização na bolsa de 33 mil milhões de dólares (cotação na passada quinta-feira) provavelmente também não.

Se calhar nem os preocupa, porque não é isso que está em questão.

Na última semana, uma cadeia norte-americana de lojas (físicas e online) de videojogos foi o tema mais importante nos mercados. E não foi por falta de temas: vacinas que não chegam, recorde de contágios, quebra no crescimento económico na Europa, primeira reunião da Reserva Federal dos EUA, confirmação por parte do FMI da grande diferença de crescimento entre a economia norte-americana e a europeia, etc.

Vamos aos factos:

1. Dia 31 de dezembro de 2020, cada ação da GameStop valia 18,84 dólares (USD) e, dia 22 de janeiro de 2021, valia 65 dólares. Na quinta-feira passada, o valor por ação era de quase 468 dólares e, no fecho dos mercados na sexta-feira, variava entre os 300 e 320 dólares por ação.

2. Pequenos investidores ("amadores") organizaram-se no Wallstreetbets, um fórum de investimentos dentro da plataforma Reddit, para comprar ações desta empresa, uma das que contava com mais posições baixistas (vendas a descoberto) por parte dos hedge funds.

3. A volatilidade do mercado, afetada por este movimento e pelo ruído criado à volta do mesmo, sofreu um ressalto tão importante como em outubro, antes das eleições norte-americanas.

De um ponto de vista técnico, ou seja, de como se produz e como se vai retroalimentando de forma excecional, este movimento não foi algo inédito: um fluxo de compras em massa que pressiona cada vez mais aqueles que têm posições baixistas através do mercado a contado (próprias ações) e de derivados (opções), fazendo com que tenham de se desfazer das suas posições mais cedo ou mais tarde (em inglês, short selling e gamma squeeze).

Mas foi a primeira vez que um movimento em bolsa juntou tantos e tão diferentes intervenientes. Por um lado, os pequenos investidores, que decidem "apostar" de forma massiva contra outro interveniente, os investidores institucionais, mais clássicos e habitualmente no centro da atualidade bolsista. Estes investimentos individuais são canalizados em massa através de plataformas de investimento digitais que tiveram um enorme sucesso comercial nos últimos anos, conseguindo bons resultados através da sua campanha de democratização dos investimentos. Por outro lado, a intervenção ou proibição da livre atuação desses investidores também foi um fator importante quando estas plataformas não deixaram que os seus clientes investissem mais na GameStop (censura para uns, uma forma de proteger os clientes para outros).

Falando de democracia, não poderia faltar o poder político: membros do Partido Democrata norte-americano insistem em investigar esse movimento "proibicionista" das plataformas. Foi tal a dimensão deste acontecimento, que o próprio Jerome Powell foi questionado sobre o fenómeno GameStop na conferência de imprensa posterior à reunião da Reserva Federal dos EUA nessa mesma semana.

E, por último, um fator decisivo e preocupante foi a situação social nos EUA. Se analisarmos comentários e discussões lançadas no Reddit para impulsionar e explicar este movimento, há duas questões que me parecem especialmente importantes. Por um lado, existe um claro sentimento de vingança contra os agentes financeiros (os hedge funds de venda a descoberto da GameStop) devido à crise de 2008 (teríamos de confirmar quantos destes hedge funds já existiam em 2008 e quantos contribuíram para a crise). Por outro lado, existe um conflito intergeracional incentivado por uma geração que se sente maltratada e afetada pelos privilégios usufruídos pela geração anterior e dos quais nunca vai usufruir devido aos salários baixos, ao elevado custo de vida e às incertezas relativamente à sua reforma. Uma autêntica bomba-relógio.

No entanto, voltando ao contexto próprio dos mercados financeiros, a explicação reside na passagem de poder dos grandes hedge funds para os cidadãos comuns, que tiveram a coragem e a ousadia de enfrentar algo que parecia intocável. Podia muito bem ser o argumento de um filme candidato aos Óscares, do estilo David e Golias. Mas não nos podemos esquecer de que tudo isto pode ter uma reviravolta, levando a que os fundos materializem a sua perda e deixando os pequenos investidores como proprietários de uma cadeia de lojas de videojogos demasiado cara.

Em princípio, os primeiros poderiam assumir essa perda. Quanto aos segundos, veremos.

Gonzalo Pradas, diretor de Gestão de Investimentos do Openbank

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