Diz que de manhã é que estava bom. Mas já não sou mãe das manhãs: eles cresceram e eu também. Ainda assim, há crianças..- Vai brincar com aqueles meninos - dizemos nós enquanto a criança se enrola na areia, colada..- Quero um gelado..E damos: um gelado, uma bola de Berlim, um sumo. Damos tudo. Afinal, o dinheiro das férias também é para isso..- Mas aqueles meninos têm a tua idade, vai lá - insistimos..- Não quero - responde ele a fazer-nos sombra. Eu também não ia querer, essa é que é a verdade: se alguém me obrigasse a ir conviver com um grupo de pessoas de meia-idade só porque o grupo é de pessoas da meia-idade também faria uma birra..- Então, vai tomar banho com os teus irmãos..- Não quero, tenho frio..- Não é nada, é medo das ondas, estás todo encarnado do calor e a areia já cola. O mar está calmo....- Não vou! Tenho frio..- Não vás, mas parem de atirar areia uns aos outros e não gritem. Já te disse para não puxares o teu irmão se ele não quer ir à água..- Ele é estúpido..- Estúpido és tu. Levas..- Dá lá!.- Não corram que atiram areia às pessoas. Saiam daqui! Parem de lutar..Vai um de castigo para cima, onde a areia está mais quente e onde não o oiço. Talvez assim, neutralizando um dos agentes da agitação consiga a paz. Só que não: fico a ver se ninguém o leva, se ele não foge da praia para me fazer correr. A paz vem, mas podre..- Venham pôr mais creme - mas já vou tarde a ver pelas cores de cada um..A rotina do creme é a pior de todas. Uma vez pus creme a um deles que ainda nem falava e a criança berrou durante tempo demais. Demorei tempo demais a perceber que a origem do choro era o creme invisível a cair da testa e a entrar nos olhos. As testas, agora, ficam como vão..Olhamos em direção ao horizonte e contemplamos grupos de filhos da idade dos nossos a brincar, a conversar, aos saltos dentro de água. "Onde é que eu errei?". Separamos os miúdos, separamo-nos do livro e levantamo-nos porque perdemos. Quando, quando chegará o dia em que voltarei a poder ler na praia? Quando podia não lia e agora que leio não posso. Acho que nunca mais chegará esse dia e, se chegar, será numa idade em que me vão doer as costas. Lembro-me quando dormia profundamente ao som dos passos dos outros na areia e das ondas a bater. Será que aconteceu mesmo? Hoje, nem na cama adormeço tão bem. .- Então, venham. Vamos passear..- Onde? Quando é que vamos embora..- Quando em apetecer. Quem é que quer fruta?.- Quero água, mas água está quente..- É o que há..As coisas ajustam-se ao final do dia. Depois de horas a lutar pelo sossego, eles rendem-se à prisão da praia. Por magia, começam a brincar ordenadamente, como uma orquestra, e dão uso às raquetes, às bolas e a todo o material de apoio que nos custou a transportar..- Em cima de mim, não. Vão mais para baixo que têm mais espaço..Tudo em ordem. Vou ler, finalmente. O sol baixa, a praia esvazia e as gaivotas regressam a medo. E a eles, que me faziam sombra, nem os oiço. Mas não leio porque adormeço torta até o frio me acordar..- Agora ponham-se todos aí para tirarmos uma fotografia..Os sorrisos abrem-se, alguns até se abraçam, o pôr do sol vem de propósito para fazer de cenário e a fotografia congela um dos escassos momentos de um dia de praia que aparece maravilhoso na fotografia. Tudo o resto, das birras ao creme, fica enterrado na areia. E as redes sociais enchem-se destas fotografias..São assim os dias de praia e é assim que mostramos as nossas vidas: feitos de momentos partilháveis mas nem por isso memoráveis. A verdade, essa, é todo o resto do dia (ou da vida)..Inês Teotónio Pereira, jurista