A realidade dos media

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Começo esta coluna pela citação extraída de um notável romance policial, "A Boneca", da islandesa Yrsa Sigurdardóttir. O romance gira em torno da investigação de várias mortes, uma delas envolvendo uma adolescente e o seu círculo próximo. Aqui vai, da página 301 da edição recente da Quetzal: "Para se distrair, Tristan passou pelos seus perfis nas redes sociais: era assim que se mantinha informado sobre o que se passava, tanto no seu pequeno círculo de amigos, como na Islândia e no mundo em geral. Não tinha paciência para ler sites de notícias, com os intermináveis relatos de políticos que não cumpriam as suas promessas, de erupções que não tinham acontecido, de observações negativas sobre turistas, conversas inúteis sobre as cores da moda e mexericos sobre o mais recente escândalo da presidência de Trump."
Evoco esta situação porque é um retrato perfeito da alteração do comportamento das gerações mais novas sobre o consumo de informação. Yrsa Sigurdardóttir indica de forma clara como a obsessão pelos antigos valores noticiosos dificulta a captação de novos públicos para os media. Nas últimas décadas tudo mudou no mundo dos media, o digital passou a ser o principal canal de distribuição de conteúdos, a imprensa e a televisão perderam audiência de uma forma acentuada - o que implica também que perderam valor já que as receitas publicitárias dependem das audiências obtidas. Basta olharmos para o panorama nacional.

Atualmente, o jornal diário com maior circulação tem vendas em banca na casa dos 40 mil exemplares, um valor semelhante ao do maior semanário. Se pensarmos que no final do século XX estes números eram de cerca de 100 mil exemplares vendidos, percebemos a gravidade da situação. Por outro lado, com muito poucas exceções, a circulação paga das edições digitais não tem valores expressivos. Mas esta quebra não incide apenas na imprensa. Os dois principais canais generalistas, SIC e TVI, que no início do século tinham um share de audiência na casa dos 20% cada, hoje em dia andam pelos 13-14%. Mais: o conjunto dos canais generalistas, nos últimos meses, tem tido um total de cerca de 40% do share de audiência global - ou seja, 60% das pessoas que veem televisão estão no cabo ou em plataformas de streaming e não nos generalistas.

As consequências na publicidade são claras: os canais generalistas hoje em dia captam cerca de 35% do bolo publicitário quando no final do ano passado tinham cerca de 39% e chegaram a estar bem acima dos 50% há alguns anos. O cabo tem crescido e está acima dos 12%. E o total da imprensa, que chegou a ser o segundo meio que mais captava publicidade, hoje tem apenas cerca de 2% do mercado. O segundo lugar é ocupado pelo digital, que já está acima dos 30% e a publicidade de rua surge em terceiro lugar, a caminho dos 15% do total do mercado. Esta alteração de hábitos de consumo de media tem muitas causas - umas serão tecnológicas, outras serão editoriais - como demasiado foco na macro política e na intriga partidária e demasiada ausência de notícias de proximidade. Este é um campo que mereceria ser estudado, mas infelizmente as ideias feitas sobrepõem-se à curiosidade da descoberta.

Nota final: Cessa esta semana a minha colaboração no Dinheiro Vivo, que iniciei em 2017, a convite de Rosália Amorim, diretora do Diário de Notícias, a quem agradeço a oportunidade e todo o apoio que sempre deu, agradecimento que estendo aos diretores do Dinheiro Vivo que também me acolheram ao longo destes anos.

Mnauel Falcão, da SF Media

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