A tecnologia já não é só para homens, mas ainda há um longo caminho a percorrer

Leah, Maria João e Sílvia têm profissões e idades diferentes, mas algo em comum: todas trabalham no setor das tecnologias de informação. A presença feminina na tecnologia tem vindo a crescer ao longo dos anos, dizem, mas ainda há muito espaço para evoluir.
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Mesmo com algum aumento na representatividade ao longo dos últimos anos, as mulheres continuam a ser uma minoria no mundo da tecnologia. De acordo com dados do Eurostat, as mulheres representavam 41% do total dos empregos ligados à ciência e engenharia na União Europeia (dados de 2019). Há já vários anos que a indústria tecnológica tenta abordar o tema, mas fazer crescer o número de mulheres na área das STEM (Ciências, Tecnologia, Engenharia e Matemática, na sigla em inglês) continua a ser uma questão ainda sem fórmula mágica à vista.

Leah Bucellato, Maria João Mira Paulo e Sílvia Neiva trabalham para as tecnológicas Unbabel, Talkdesk e Critical Techworks, respetivamente. Com percursos e profissões díspares, as três reconhecem que ainda há espaço para evoluir na representatividade feminina no mundo tecnológico.

Para Maria João Mira Paulo, que ingressou em 2019 na Talkdesk, tudo começou com um Gameboy Advance. Hoje desempenha funções como engenheira de software na tecnológica dedicada a soluções para centros de contacto; o interesse pela área da tecnologia existe desde que se lembra, diz. "Sempre me senti muito ligada à área da tecnologia, mesmo quando era criança. Era viciada no meu Gameboy Advance e levava-o para todo o lado - com especial gosto pelo Super Mario Bros, que passava horas a jogar (e tinha bastante jeito)".

À medida que foi crescendo, o entusiasmo aumentou, dedicando mais atenção às tendências do mundo tecnológico. Anos depois, terminava o mestrado em engenharia informática na Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto. Maria João sempre teve noção da falta de representatividade neste setor. "Tinha bastante noção da falta de representatividade do género feminino na área tecnológica quando me candidatei ao curso de engenharia na faculdade e a verdade é que essa realidade trouxe-me uma experiência bastante diferente daquela que vivia no secundário."

O género masculino dominava o curso. "O único desafio foi, muitas vezes, sentir-me sozinha como uma das poucas mulheres na área e no curso. Às vezes, senti falta de outra colega com quem partilhar esta sensação de ser das poucas raparigas num mundo de homens. Mas isso também fez com que aprendesse a lidar melhor com comportamentos de ambas as partes, o que me transformou numa pessoa mais descomplicada e que gosta de manter tudo o mais simples possível", explica.

Todavia, diz que nunca "se sentiu especial por ser mulher ou rejeitada por não ser homem". "Devido a toda a experiência do curso, penso que cheguei à Talkdesk bastante bem preparada para trabalhar num mundo tradicionalmente com mais homens." Recentemente passou a ter mais uma colega: no total, passaram a ser duas mulheres numa equipa com sete homens.

Em relação ao tantas vezes mencionado fenómeno do multitasking feminino, Maria João diz que só pode falar por experiência própria, mas acredita "que exista de facto uma diferença". "Considero que as mulheres conseguem gerir melhor o tempo e aumentar a produtividade no trabalho que desenvolvem, enquanto os homens muitas vezes preferem gerir um projeto de cada vez. No entanto, a base do conhecimento é exatamente a mesma e aí estamos em pé de igualdade. Também me parece que a sensibilidade das mulheres é uma vantagem importante em ambiente profissional - temos mais tendência para fazer a nossa voz ser ouvida, questionar mais e isso às vezes leva-nos mais longe, faz-nos arriscar mais. No mundo tecnológico, a mudança e a inovação fazem parte do nosso dia-a-dia e são extremamente valiosas. Por isso, arriscar e ter vontade de o fazer é, sem dúvida, uma grande virtude", resume.

No ambiente de trabalho, sublinha que a empresa fê-la "sentir-se tão valorizada como qualquer outro colega - isso porque procura talento e não necessariamente um género". Maria João acredita que este poderá mesmo ser "o passo que deve ser dado no setor para desmistificar a ideia de que a área tecnológica é tradicionalmente composta por um universo masculino."

Já Sílvia Neiva, que trabalha há dois anos na Critical TechWorks como scrum knight, ligada à análise de dados, tem uma experiência bastante diferente. Completa este ano duas décadas desde que terminou a licenciatura em informática e matemática aplicada e, apesar de reconhecer que não é comum, "já tinha uma boa representatividade de mulheres no meu curso". "Por esse motivo, nunca me senti num mundo mais masculino, nunca notei isso."

"No meu percurso, felizmente, nunca senti ou assisti a uma diferenciação, quer no curso quer no trabalho. Contudo, nota-se uma evolução do número de mulheres nas empresas e a liderarem investigações científicas a nível nacional e internacional. É importante que se assegure igual acesso a qualquer pessoa e permitir que cada um se faça valer pelo seu mérito, independentemente do seu género", sublinha Sílvia Neiva.

Em 20 anos de carreira, já trabalhou em empresas ligadas à área de seguros, banca, consultoria, e-commerce. "Estas experiências permitiram-me conhecer diversas empresas, culturas e desempenhar diferentes funções como programadora, freelancer e gestora de equipas. É muito interessante diversificar, tanto do ponto de vista pessoal, como do ponto de vista profissional", destaca.

Já Leah Bucellato, VP People na Unbabel, aponta que "a representação das mulheres no mundo da tecnologia é um tema que já está a ser alvo de conversa e já progredimos muito mas ainda é uma conversa que tem de continuar".

"Acho que temos de ir à fonte do problema, começar a desafiar as ideias desde o início. Vemos raparigas a entrar na área das STEM e já fizemos algumas melhorias, mas os estereótipos para com as mulheres continuam a existir, assim como as normas culturais que continuam a ter impacto no ingresso das mulheres nestas áreas. A ironia é que as raparigas e os rapazes têm um desempenho muito semelhante em termos de matemática, álgebra, ciências, e de repente este fosso começa a surgir e começa a tornar-se cada vez maior à medida que a idade avança."

Na empresa, o rácio é de 67% de homens contra 33% de mulheres. "Não somos perfeitos e entendemos isso, mas há que reconhecer que não é uma questão da Unbabel, é mesmo da indústria, temos de abordar este assunto."

A VP de People da tecnológica dedicada à área da tradução com inteligência artificial sublinha a necessidade de haver mulheres em papéis de liderança na tecnologia e do recrutamento ativo de mulheres. "Para termos grupos minoritários nesta indústria temos de garantir que têm a capacidade de se ver a si próprias e identificar-se, não ver apenas um tipo de pessoa neste ambiente", sublinha.

Há ainda que trabalhar a confiança. "Temos de estar ativamente a recrutar mulheres, não é só pôr um anúncio e esperar que venham até nós. E acho que quando vamos pelas rotas mais habituais à procura de talento vamos acabar todos a tentar pescar na mesma zona, todos a olhar para os mesmos candidatos. E é algo que é difícil."

"As mulheres são diferentes [dos homens], quando veem um anúncio de trabalho querem quase preencher a totalidade dos requisitos da vaga e os homens avançam mesmo que só tenham 75%, por exemplo. É uma questão de confiança e volta às questões dos modelos, é importante ver que há mulheres nessa área. E é importante que a própria indústria tenha noção dos seus "vícios" e consiga reconhecê-los."

Leah Bucellato tem a seu cargo uma equipa de 175 trabalhadores. Natural da África do Sul, a carreira passou ainda por Inglaterra, onde trabalhava em publicidade. O interesse pela tecnologia surgiu com as primeiras campanhas de lançamento do iPhone e da App Store, a loja de aplicações desenvolvida pela Apple.

Em Portugal há três anos, quase dois deles na Unbabel, desde o ano passado que adotou uma abordagem mais "aberta e transparente" a partir do momento em que as escolas encerraram. Com dois filhos, um com quatro e outro com seis anos, fez questão de comunicar à equipa a necessidade de fazer ajustes para conciliar os dois mundos.

"Para mim, como líder, fui muito aberta com a minha equipa. Quando se soube que as escolas iam fechar enviei um email e disse que esta era a minha realidade - que ia precisar de fazer ajustes, reduzir as reuniões, passar algumas reuniões individuais para reuniões de grupo... Também avisei que ia passar a trabalhar a horas diferentes, ou ao fim de semana ou à noite, porque precisava de tomar conta dos meus filhos durante o dia. Mas avisei que não esperava que a equipa trabalhasse horas semelhantes, mas que também fizessem ajustes que fossem convenientes para a respetiva situação de vida."

Conjugar carreira e filhos, mesmo que tenha uma "tag team com o marido" é "difícil, é um malabarismo constante. Alguns dias parecem mais fáceis do que outros, reconheço, mas acho que a chave é a flexibilidade."

Sílvia Neiva também tem dois filhos e aponta que o teletrabalho e o acompanhamento aos filhos não tem sido fácil de conciliar. "No meu caso, comecei a trabalhar na atual equipa que integro, durante a pandemia, ou seja, a equipa nunca esteve fisicamente toda junta. É muito importante a comunicação e tentar ter momentos mais "sociais", recriando aquilo que no escritório seria tomar um café. Mas, a empresa também tem conhecimento e compreende o apoio que tenho que dar à minha família e, por isso, permite-me tirar um dia livre por semana para poder dedicar mais tempo ao acompanhamento dos meus filhos."

Antes da pandemia já existia a flexibilidade para conciliar a vida profissional com a vida pessoal, sublinha. "Desde o princípio que tive flexibilidade de horários, a possibilidade de trabalhar a partir de casa, poder levar os meus filhos para o escritório, se fosse necessário, e senti sempre um grande respeito pelas pessoas."

Maria João Mira Paulo não tem filhos, mas tem de conciliar o trabalho com o resto da família - também em regime de teletrabalho. Reconhece a flexibilidade horária como ponto positivo, mas admite "as saudades do escritório do Porto". "Claro que virmos todos para casa de repente também trouxe alguns desafios - o principal é, definitivamente, separar as tarefas de trabalho das tarefas domésticas. Por vezes não é fácil coordenar o meu horário laboral com o da minha família, mas penso que é um desafio geral. Trabalhar a partir de casa exige mais disciplina, o que acaba por nos fazer crescer profissionalmente também - sinto que é fundamental dar o nosso melhor para nos sentirmos concretizados", resume.

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