Só há uma coisa de que as audiências gostam menos que conteúdos com anúncios: são os conteúdos pagos que também têm anúncios. É isso que transparece com a dificuldade que a Netflix tem tido a atrair assinantes para a sua nova versão mais barata com publicidade.
Apesar dos números melhor que o esperado que a gigante do streaming reportou no último trimestre, quando adicionou 7,7 milhões de novos clientes e (bem) acima das expectativas dos analistas, a nova versão Básica, para todos os efeitos, é um flop.
O analista da Insider Intelligence Daniel Konstantinovic disse, no podcast da firma, que é uma proposta pouco atrativa para a base de clientes do Netflix. A empresa habituou a sua audiência a consumir horas e horas de conteúdos sem interrupções e os intervalos de publicidade tornaram-se memórias distantes para muitos, que cortaram os serviços de televisão por cabo.
Essa era toda a premissa do Netflix e do streaming: pagar para ter conteúdos exclusivos e de qualidade sem a inconveniência dos anúncios. A adição de uma camada de publicidade a troco de um parco desconto não está a traduzir-se numa oferta ganhadora. Pior, pode macular a estratégia que o Netflix passou tantos anos a desenvolver (já para não falar da nova postura relativa à partilha de passwords, que deixou muita gente em polvorosa).
Neste momento, ainda com poucos meses de versão básica para contar uma história completa, o intuito da empresa é que a opção com anúncios venha a representar 10% das receitas globais. É uma meta que parece razoável, na verdade - a não ser que demore tanto tempo a atingir que o mercado comece a ficar verdadeiramente preocupado com o rumo do negócio.
Essas dúvidas já existem e o facto de o co-CEO e fundador Reed Hastings ter deixado o cargo, substituído por Greg Peters (ao lado de Ted Sarandos), indica que o mar não é calmo e o horizonte não está plano.
Mas os problemas que se assomam no Netflix - que este ano reduziu consideravelmente o seu investimento em conteúdos - não são únicos da plataforma. Já sabemos há algum tempo que o mercado do streaming atingiu o pico de saturação e começou a corrigir, tal como outros negócios que experimentaram um crescimento exponencial durante a pandemia de covid-19.
Até o conglomerado colossal da Disney, que ultrapassou os 164 milhões de assinantes Disney+ em apenas três anos, reportou uma quebra pela primeira vez no primeiro trimestre fiscal de 2023. A quebra, para 161,8 milhões, assinala uma fase complicada do mercado de streaming global. Os consumidores estão a ser apertados pela inflação, pela subida das taxas de juro e a incerteza económica. Mesmo que não esteja a verificar-se um êxodo em massa de clientes, há uma vaga de substituições e um repensar da distribuição do orçamento. E como é bastante claro há algum tempo, não temos olhos - nem carteira - para tantos serviços de streaming.
Um dos motivos pelos quais as audiências começaram a cortar nos serviços tradicionais era a poupança - o streaming era mais barato que os pacotes por cabo. Outro era a simplificação e a conveniência do acesso e outro a qualidade e irreverência dos conteúdos. Mas com o amadurecimento dos negócios e o aumento da concorrência, estamos a assistir no streaming à repetição de alguns dos problemas dos modelos antecessores. Menos risco nos investimentos, mais conformidade, a cedência à publicidade e o empacotamento de serviços. É um círculo que está quase completo: voltamos a ver tendências que acabaram por delapidar de forma dramática o negócio da televisão por cabo.
Talvez a evolução neste sentido fosse inevitável e agora seja possível enveredar por novos caminhos, até porque a forma como as audiências consomem conteúdos mudou de forma permanente. Mas não deixa de ser o fim de uma era. O ciclo de disrupção do streaming está completo. Para todos os efeitos, acabou a lua-de-mel.