Os critérios para o futuro reconhecimento de contratos de trabalho com plataformas digitais estão longe de estar estabilizados a nível europeu, num momento em que se discutem ainda os moldes finais de uma diretiva para os Estados-membros, mas o governo português já fechou uma proposta que enviou ao parlamento, e que reduz de dez para seis os indícios de presunção de laboralidade inicialmente avançados. De fora ficam remissões diretas para a gestão de trabalho feita a partir de aplicações.
A proposta de alterações às leis laborais entregue aos deputados na última segunda-feira alterou substancialmente o texto com que, em outubro, antes do final da última legislatura, o governo se propunha regular as relações de trabalho em empresas como Glovo, Getir, Uber, Bolt ou Free Now.
Por um lado, o governo abre agora espaço para que o reconhecimento da contratação de trabalhadores não se faça apenas com o "operador de plataforma digital", mas também com "outra pessoa singular ou coletiva beneficiária que nela opere". Por outro, apaga do texto uma série de características da atividade que remetem diretamente para o controlo direto das plataformas digitais sobre a forma de prestar trabalho, nomeadamente, através dos algoritmos.
Assim, cai o indício de exercício de direção patronal associado ao controlo "em tempo real" do trabalhador, "através de um sistema de geolocalização contínuo e de uma gestão algorítmica".
A gestão algorítmica do trabalho equiparada a direção patronal foi, por exemplo, a opção assumida pelos legisladores espanhóis para reconhecerem contratos entre estafetas de entregas e plataformas. Em Espanha, desde o ano passado que é empregador quem exerce "faculdades empresariais de organização, direção e controlo de forma direta, indireta ou implícita, mediante a gestão algorítmica do serviço ou das condições de trabalho, através de plataforma digital".
Já na nova proposta portuguesa assume-se agora que é patrão quem "supervisiona a prestação da atividade ou verifica a qualidade da atividade prestada, incluindo através de meios eletrónicos".
Cai também do texto nacional a generalidade dos critérios que assentavam na relação entre o prestador da atividade e o utilizador dos serviços, o cliente, e que caracterizavam em larga medida a falta de autonomia do trabalhador sobre os termos em que eram prestados os serviços. A saber: o facto de ser o operador a determinar os preços pagos pelos clientes; processar os pagamentos; ser dele a marca usada no serviço; ser ele a gerir exclusivamente a comunicação com clientes; e ainda controlar a qualidade da prestação de serviço, dando a conhecer aos clientes o rating, ou a avaliação, de quem o presta.
Sai ainda da proposta de lei o indício relativo à possibilidade de o operador "excluir o prestador de futuras atividades via plataforma, através da desativação da conta quando considere que este tem uma avaliação insuficiente".
Caso o texto do governo passe pelo processo parlamentar sem alterações nestes critérios, a Autoridade para as Condições do Trabalho e os tribunais já não terão na disponibilidade de ratings, na possibilidade de suspensão de contas, nos processos de pagamento, na geolocalização e na gestão do serviço através de algoritmos prova de que estão perante um trabalhador por conta de outrem sem vínculo devidamente reconhecido.
Nos seis indícios reformulados, estarão: a fixação da retribuição ou de limites mínimos e máximos; a imposição de regras sobre apresentação e conduta; a supervisão da prestação da atividade e da sua qualidade, "incluindo através de meios electrónicos"; impedimentos à escolha de horários, tarefas e à subcontratatação; impedimentos à escolha de clientes ou à possibilidade de prestar serviços a terceiros via plataforma; a posse dos instrumentos de trabalho ou aluguer destes ao trabalhador. Mas, sem referências à gestão algorítmica da atividade, característica própria das plataformas digitais.
A proposta portuguesa parece acompanhar de perto os critérios definidos pela Comissão Europeia na sua proposta de diretiva para os 27. Esta inclui os cinco primeiros critérios portugueses, mas não aquele que se refere à posse ou aluguer dos instrumentos de trabalho. Exige a verificação de dois indícios para reconhecer contratos. Já o texto do governo português pede a "verificação de algumas das características identificadas".
Mas o texto europeu está ainda longe de estar fixo, com uma proposta apresentada no mês passado para que seja considerada uma lista muito maior de indícios, não exaustiva, onde se incluem ainda aspetos como a geolocalização dos trabalhadores, os sistemas de rating e imposição de sanções, mas também o facto de as plataformas assumirem formação, seguros ou outros meios de proteção social em nome dos trabalhadores, ou mesmo terem a propriedade dos meios digitais usados no trabalho, como as aplicações.
A proposta quer ainda que os Estados-membros se baseiem em jurisprudência nacional e europeia para reconhecerem contratos, assim como nas recomendações da Organização Internacional do Trabalho. Partiu do grupo do Partido Socialista Europeu, onde se filia o partido do governo português, e está ser contestada pelo Partido Popular Europeu e pelo Renovar Europa. Deverá ser discutida nos próximos meses.