Não foi só mérito da "reabertura da atividade económica" e da suposta vitalidade "impressionante" da economia portuguesa, como tem acenado o governo nas últimas semanas. As Finanças conseguiram eliminar quase 300 milhões de euros do lado da despesa no passado mês de julho e não tiveram de ir aos mercados endividar-se em mais de 800 milhões de euros para completar o plano de financiamento oficial que está delineado no Orçamento do Estado. Razão: o maior credor da República, o Mecanismo Europeu de Estabilidade (MEE ou ESM na sigla em inglês), devolveu este dinheiro para fazer acertos com o passado.
Na verdade, trata-se de acertos de contas com aquele que é o maior credor, que vem do tempo do resgate do início de 2011, tinha Portugal caído na bancarrota. O ESM dá um impulso às contas públicas e vai ser importante, mesmo. Vai ter impacto no défice em contabilidade nacional, contribui para que este défice desça, confirma o próprio governo. É importante, tendo em conta o estado sobrecarregado em que ficaram as contas públicas por causa da pandemia covid, que rebentou em março de 2020.
Em julho último, Portugal recebeu um enorme balão de oxigénio financeiro do credor liderado pelo economista alemão, Klaus Regling. O fundo de resgate da zona euro (ESM) devolveu ao país (ao Ministério das Finanças, de João Leão) quase 1,1 mil milhões de euros em dívida (capital) emitida e juros cobrados a mais no tempo do programa de assistência, em 2011.
A agência que gere a dívida pública (IGCP) confirmou esta semana que, "em julho, o FEEF [Fundo Europeu de Estabilidade Financeira, hoje ESM] reembolsou a margem financeira retida aquando do empréstimo realizado em junho de 2011, com maturidade original em julho de 2021 (entretanto estendida para 2036), no montante de 828 milhões de euros, a que acresceram juros recebidos no montante de 287 milhões de euros". Dá 1115 milhões de euros.
Os 287 milhões de euros abatem diretamente aos juros, ou seja, aliviam a despesa e aceleram imediatamente a redução do défice, que em julho foi significativa, a maior desde igual mês de 2019, o ano do excedente orçamental histórico. Portanto, quase 300 milhões da "melhoria" do défice até julho acontece porque o ESM devolveu dinheiro à República. Como já referido, são acertos do programa de resgate.
Abate ao défice seguido por Bruxelas
Já os 828 milhões de euros não abatem à despesa. São uma operação financeira, no fundo, uma compensação ao país por dívida contraída a mais no passado. Não afeta o saldo vivo da dívida, mas afeta o saldo orçamental em contas nacionais (a relevante para Bruxelas e restantes observadores internacionais) e é classificada pelas Finanças como financiamento (dinheiro novo que vai ser necessário para pagar dívida ou despesas não cobertas pela receita) do ano 2021 no Orçamento do Estado (OE2021), atualmente em vigor.
Ou seja, se estes mais de 800 milhões de euros não tivessem vindo do Luxemburgo (onde o ESM está baseado), Portugal ficaria com um plano de financiamento incompleto e teria de ir aos mercados para colmatar o valor em falta. O dinheiro do ESM é quase tão barato quanto as idas aos mercados, em todo o caso.
Fonte oficial do Ministério das Finanças explica que "o reembolso da margem é classificado como uma operação financeira e como tal não afeta as contas em contabilidade pública, com exceção do montante associado aos juros, razão pela qual não aparece no boletim a execução da Direção-Geral do Orçamento (DGO)".
Não afeta em contabilidade de caixa, mas afeta em contabilidade nacional, que é a que serve para avaliar as contas públicas do país à luz do Pacto de Estabilidade (que por causa da pandemia, para não dificultar ainda mais a vida aos governos, está em modo pausa e só volta a ser ativado em 2023).
A tutela de João Leão diz, no OE2021, que "a melhoria do défice orçamental em percentagem do PIB resulta do efeito conjugado de um aumento da receita (0,9 p.p. ou pontos percentuais) e de uma diminuição da despesa (2,1 p.p.). A receita em % do PIB aumenta, em particular, por via: da receita de capital que, para além de incluir o reembolso das pre-paid margins do FEEF (1088 milhões de euros), contempla também parte dos recebimentos associados ao Fundo de Recuperação e Resiliência; e pela outra receita corrente, que inclui os apoios relacionados com os fundos europeus de suporte ao emprego".
Do outro lado do balanço, o Ministério diz que "a redução da despesa em percentagem do PIB é justificada essencialmente pelo menor impacto das medidas de política associadas à covid-19 (caso dos subsídios) e às despesas de capital, que em 2020 incluem 1200 milhões de euros de empréstimos à TAP e em 2021 uma possível garantia a um empréstimo bancário à mesma entidade, em montante inferior".
O Conselho das Finanças Públicas (CFP) também confirma que a devolução de verbas pelo ESM é um maná muito importante para ajudar a reduzir o défice (o governo tem como objetivo baixar de 5,7% do PIB em 2020 para 4,5% neste ano). Os 1,1 mil milhões de euros que acabaram de aterrar em julho são, aliás, a maior medida extraordinária do ano (aparece como despesa a menos) e, segundo a entidade liderada por Nazaré Costa Cabral, até vai ajudar a pagar a (nova) ajuda ao Novo Banco.
As maiores receitas extraordinárias deste ano
A verba do ESM é o dobro das quatro maiores receitas extraordinárias juntas previstas para este ano. A soma de dividendos do Banco de Portugal (336,4), consignação do ISP ao Fundo Ambiental para reduzir os preços dos transportes públicos (138,6 milhões de euros), contribuição sobre o audiovisual consignada à RTP via impostos (106,9 milhões) e dividendos da CGD (66,1 milhões) dá cerca de 647 milhões de euros. Os dados são das Finanças.
Para o CFP, "em 2021, as medidas one-off [extra e pontuais] deverão ter um impacto líquido favorável no saldo de 559 milhões de euros (0,3% do PIB), porque o efeito positivo do recebimento das margens pagas antecipadamente ao FEEF (1088 milhões de euros) e da recuperação da garantia ao BPP (63 milhões) mais do que compensa a despesa prevista com a recapitalização do NB (430 milhões) e o pagamento de ativos por impostos diferidos (162 milhões)".
Entretanto, sabe-se que a garantia do BPP não está assegurada porque João Rendeiro continua a conseguir arrastar processos em tribunal. E a ajuda dos contribuintes ao que resta do antigo BES foi, até agora, ligeiramente inferior ao previsto porque o Estado tem dúvidas sobre algumas das operações que geraram perdas. Este ano já foram injetados no NB mais 317 milhões de euros, em todo o caso.
Da altura do programa de intervenção da troika, Portugal já pagou tudo o que devia ao Fundo Monetário Internacional (FMI), quase 26 mil milhões de euros. Mas ainda faltam os credores europeus. O ESM é o maior deles todos: à zona euro os contribuintes devem 25,3 mil milhões de euros. Esta dívida deve começar a ser paga já no ano que vem e estar totalmente saldada em 2042. O segundo maior credor é o fundo organizado pela Comissão Europeia para tirar os países da bancarrota: ao MEEF (EFSM), os portugueses devem mais 24,3 mil milhões de euros.
A operação do ESM estava calendarizada, mas a verdade é que estas verbas chegam numa altura decisiva, em que o governo está a tentar retirar gradualmente os apoios covid à economia, a gerir com pinças o endividamento muito elevado, mas em que também tenta reativar finalmente o investimento público, a ver se com isto puxa pelos privados e agarra os fundos europeus, sobretudo os que vêm a fundo perdido (não contam para a dívida imediatamente). E no final de setembro (dia 26) também há eleições autárquicas, claro.
Em 2016, já tinha acontecido o mesmo, mas numa escala bastante menor face ao acerto deste ano. Segundo o IGCP, em dezembro de 2016, o FEEF reembolsou a margem financeira retida aquando do empréstimo de junho de 2011, com maturidade original em dezembro de 2016 (entretanto estendida para 2025), "no montante de 264 milhões de euros, a que acresceram juros recebidos no montante de 37,5 milhões de euros".
Contas públicas não refletem apenas a retoma da economia. Fundo de resgate da zona euro (ESM) devolveu a Portugal 800 milhões de euros em dívida e quase 300 milhões em juros cobrados a mais no tempo do programa de assistência, em 2011. Défice em contas nacionais recua por causa disto.