Como tem sido amplamente discutido, a aplicação prática das alterações introduzidas no regime do teletrabalho, comportará enormes dificuldades. Isso mesmo reconheceu o próprio Presidente da República que, ainda assim promulgou a lei atendendo ao contexto e urgência desta disciplina legislativa..Considerando que já existia um regime legal do teletrabalho no Código do Trabalho que assegurava igualdade de direitos dos teletrabalhadores relativamente aos demais trabalhadores, sublinhando as particulares exigências em matéria de segurança e saúde e, prevendo, quanto aos instrumentos de trabalho que, na falta de acordo das partes, caberia ao empregador o seu fornecimento e o pagamento das inerentes despesas, tenho, pessoalmente, algumas dúvidas quanto à urgência desta alteração legislativa. Não gostaria de acreditar que é apenas a urgência em fazer mais uma alteração ao Código do Trabalho com um intuito meramente panfletário, mas parece mesmo que sim....Vejamos..1 - Parece que o trabalhador vai poder passar a trabalhar a partir de onde quiser... só que não..O teletrabalho era definido no Código do Trabalho por referência à prestação de atividade pelo trabalhador fora da empresa. Esta noção foi alterada, passando a considerar-se teletrabalho a prestação de atividade pelo trabalhador em local não determinado pelo empregador. Contudo, atendendo ao resto do regime legal, apesar de a nova definição transmitir a ideia de que o trabalhador vai poder prestar livremente o seu trabalho a partir de onde entender (como muitos trabalhadores almejavam), a verdade é que o teletrabalhador terá de prestar a sua atividade profissional no local de trabalho que constar do acordo de teletrabalho, apenas a podendo exercer a partir de outro lugar, mediante acordo escrito com o empregador. E é bom que não arrisque trabalhar a partir de outro local, sem o acordo do empregador, porque se tiver algum acidente não fica coberto pelo seguro de acidentes de trabalho..2 - A lei vem prever a possibilidade de teletrabalho parcial... só que não o regula..A lei vem prever a possibilidade de o teletrabalho ser definido em regime de permanência ou de alternância de períodos de trabalho à distância e de trabalho presencial (modelo híbrido). Esta era uma possibilidade que decorria já do princípio da autonomia privada, tendo sido, desde sempre, admitida. Contudo, ao incluir o trabalho remoto parcial, inconsequentemente, no conceito de teletrabalho, para todos os efeitos legais, o legislador passa, agora, a obrigar à aplicação ao trabalho remoto parcial, do regime legal do teletrabalho configurado para o teletrabalho total, permanente ou integral. Assim, as empresas que pretendam permitir que os trabalhadores fiquem a trabalhar remotamente um dia por semana, terão de celebrar, com cada um deles, um acordo de teletrabalho, com todo o conteúdo legalmente exigido..3 - As empresas vão passar a ter de fundamentar, por escrito, a oposição aos pedidos de teletrabalho... só que podem opor-se porque sim....A lei veio prever que sempre que um trabalhador com funções compatíveis proponha o regime de teletrabalho, o empregador só poderá recusar por escrito e com indicação do fundamento da recusa. À primeira vista, a lei parece prever um direito geral ao teletrabalho para os trabalhadores com funções compatíveis. Mas não! Não se exige uma especial fundamentação da recusa. Basta que a oposição seja escrita e fundamentada. Em última instância, a fundamentação pode ser tão simples quanto a empresa não ter uma política de teletrabalho. Em suma, nenhum direito adicional para os trabalhadores e nenhuma limitação real (felizmente) ao poder de gestão das empresas....4 - Os acordos de teletrabalho passam a poder ser celebrados com uma duração indeterminada... só que podem ser denunciados, a qualquer momento, por qualquer das partes..Prevê-se que os acordos de teletrabalho possam ter duração determinada (com o máximo de 6 meses, renováveis) ou indeterminada. Contudo, nos acordos de teletrabalho de duração indeterminada, qualquer das partes pode fazer cessar o acordo de teletrabalho, mediante a simples observância de um pré-aviso de 60 dias. Isto significa que as Empresas podem, observando a simples antecedência de 60 dias, exigir que os trabalhadores passem a prestar trabalho presencial, independentemente de eles terem mudado de casa para longe das instalações da Empresa por terem celebrado um acordo de teletrabalho. Do mesmo modo que os trabalhadores podem, a qualquer momento, desde que com aquela antecedência, pedir para regressarem às instalações da Empresa, mesmo que esta, por ter adotado um modelo de teletrabalho generalizado, não disponha de instalações! Para uma legislatura em que tanto se falou no combate à instabilidade no emprego, este é, possivelmente, o regime de contrato de trabalho mais precário, de todos..5 - Prevê-se que o empregador tem de fornecer os equipamentos necessários e pagar as despesas adicionais causadas pelo teletrabalho... só que é praticamente impossível provar o caráter adicional das despesas..A lei impede que trabalhadores e empresas acordem livremente em matéria de despesas (como sucedia anteriormente) e impõe ao empregador o fornecimento dos equipamentos e sistemas necessários à prestação da atividade em teletrabalho e o pagamento de todas as despesas adicionais, nomeadamente com energia e rede. Não se compreende o motivo pelo qual o legislador decidiu retirar esta matéria do domínio da autonomia privada, até porque o empregador nunca poderá impor ao trabalhador quaisquer despesas contra a sua vontade, pois contra a vontade deste não há sequer teletrabalho! Mas o pior é que se impõe que o pagamento das referidas despesas ocorra depois de elas ocorrerem e se limite ao adicional, apurado face às despesas incorridas no mesmo mês do ano passado. Ora, considerando que nos primeiros meses do ano passado os trabalhadores com funções compatíveis com teletrabalho já estavam em teletrabalho e viveram, em geral, um acréscimo anormal de despesas gerais, será muito difícil, para a maioria, provar qualquer acréscimo. E diga-se mais: em rigor esta alteração vem inviabilizar a possibilidade de atribuição de um subsídio para compensar os trabalhadores do acréscimo geral de despesas com o teletrabalho, como vinha sendo praticado..6 - A urgência das alterações ao regime teletrabalho podia prender-se com a proximidade de mais um período de teletrabalho obrigatório... só que o novo regime de teletrabalho não será aplicável ao próximo confinamento!..É verdade: a Resolução do Conselho de Ministros determina a obrigatoriedade do regime de teletrabalho, expressamente, nos termos previstos no Decreto-Lei nº 79-A/2020, de 1 de outubro, um diploma que tem um regime próprio aplicável ao teletrabalho obrigatório. Não era, assim, pela necessidade de ter um regime aplicável aos períodos de teletrabalho obrigatório (que já existia e se mantém em vigor até Março do próximo ano), que se justificava qualquer alteração ao regime do teletrabalho instituído por acordo das partes, cuja disciplina já constava do Código de Trabalho, em termos muito mais claros e, até, mais vantajosos para os trabalhadores..Estes são os factos e o enquadramento jurídico. O julgamento, esse, deixo-o para si, caro leitor!.Pode ser má vontade minha, mas, para isto, não precisávamos de nenhuma alteração (e muito menos com urgência) ao Código do Trabalho..Ângela Afonso, advogada da Serra Lopes, Cortes Martins. A autora publicou artigos desenvolvidos sobre cada um destes pontos, que podem ser lidos aqui.