Aperto aos recibos verdes das plataformas digitais arrisca ficar na gaveta

Juristas alertam para a dificuldade de aplicação e fiscalização das novas regras que entram em vigor a 1 de maio. Proibição do outsourcing e exclusão do período experimental são outras das alterações que merecem nota negativa.
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Grande parte das mais de 150 alterações ao Código do Trabalho, no âmbito da Agenda do Trabalho Digno, vão entrar em vigor a 1 de maio, Dia do Trabalhador, depois de o diploma ter sido publicado esta segunda-feira em Diário da República. Analisando as novas medidas que constam da lei, quatro especialistas em Direito do Trabalho, consultados pelo Dinheiro Vivo, consideram que a presunção de vínculo laboral entre trabalhadores e plataformas digitais, como Uber, Glovo e Bolt, arrisca ficar na gaveta por ser de muito difícil aplicação e fiscalização.

As mudanças ao Código do Trabalho, aprovadas pelo Parlamento em fevereiro, estabelecem a presunção de vínculo laboral com a plataforma digital, em primeira instância, se forem verificados pelo menos dois de seis indicadores - como a fixação da retribuição pela plataforma ou quando os equipamentos pertençam à multinacional - que demonstrem que estes colaboradores, a recibos verdes, trabalham de forma dependente. Esta alteração não deixa, contudo, de fora a possibilidade de o contrato ser celebrado, em alternativa, com as pequenas e médias empresas intermediárias que operam nestes setores, quando, por exemplo, a plataforma conteste essa presunção de laboralidade.

Quando provada, a presunção de laboralidade permite ao trabalhador aceder a um conjunto de direitos previstos nos contratos por conta de outrem como férias e respetivo subsídio, folgas semanais, assim como proteção social, através da regularização das contribuições sociais: 11% a cargo do empregado e 23,75% por conta da empresa.

Ângela Afonso, associada sénior da área laboral da Cuatrecasas, sinaliza que "a lei prevê que, nos casos em que se considere existir um contrato de trabalho por força desta presunção, apenas serão aplicáveis aos prestadores as normas laborais compatíveis com a natureza da sua atividade". "Ou seja, não só é difícil provar as bases da presunção como, mesmo conseguindo-se fazer operar a presunção, nunca se consegue uma total equiparação dos trabalhadores das plataformas aos demais. É razão para perguntar: para que serve afinal a presunção?!", critica a jurista.

No mesmo sentido, Eduardo Castro Marques, da Dower Law Firm, considera que "fica em aberto a noção de compatibilidade, que suscitará dúvidas na aplicação do regime". Por isso, o jurista conclui que "a presunção de laboralidade nas plataformas digitais é um dos regimes cuja aplicação prática se revelará mais difícil". Ainda assim, o especialista em Direito laboral enaltece a "regulamentação desta nova forma de trabalho" perante os "múltiplos riscos associados, como a precariedade e desigualdade no acesso à proteção social".

Luís Almeida Carneiro, da sociedade de advogados Espanha & Associados, também defende a regulamentação desta atividade, mas deixa um alerta: "Se a presunção de laboralidade, em vigor há alguns anos no Código do Trabalho, gera algumas dificuldades de aplicação prática, o que se dirá desta nova presunção". O jurista vai ainda mais longe e conclui que "as entidades que exploram atividades económicas através de plataformas digitais só assistirão à conversão dos contratos em vigor com os seus prestadores em contratos de trabalho se assim o decidirem". Por outro lado, a presunção de laboralidade, é, na análise do jurista, "a medida mais difícil de aplicar e fiscalizar, quer pela sua novidade, como pela sua complexidade técnico-jurídica".

O especialista em Direito do Trabalho, da CMS, Tiago Magalhães, lembra ainda que, "muitas vezes, são os próprios trabalhadores que, por quererem uma maior flexibilidade e autonomia, pretendem não ter contrato de trabalho". Na sua perspetiva, "o Estado, ao invés de rever o regime de proteção social dos trabalhadores independentes, tornando-o mais robusto e protetor dos prestadores de serviços, faz recair essa obrigação sobre as empresas".

Os últimos dados conhecidos, relativos ao final do ano passado, apontam para cerca de 100 mil trabalhadores das plataformas digitais, em Portugal. Em 2020, o Instituto para a Mobilidade e Transportes (IMT), que regula a atividade dos motoristas e operadores de transporte descaracterizado de passageiros, os TVDE, contabilizava cerca de 40 mil motoristas, mas a estes há ainda que somar os estafetas que são em maior número.

Nota negativa merecem ainda duas mudanças da Agenda do Trabalho Digno: a proibição do outsourcing durante um ano após um despedimento e a exclusão do período experimental, atualmente de 180 dias ou meio ano, para estagiários profissionais, jovens à procura do primeiro emprego e para desempregados de longa duração, caso o prazo do anterior contrato de trabalho a termo, celebrado com um empregador diferente, tenha sido igual ou superior a 90 dias.

Tiago Magalhães, da CMS, antecipa que "as alterações previstas na contabilização do período experimental possam vir a ser um entrave à contratação destes trabalhadores, o que acaba por ser pernicioso, já que o racional seria protegê-los". Para Ângela Afonso, "esta solução é absurda porque o período experimental serve para as partes avaliarem a sua adaptação uma à outra". "É penalizadora não apenas para as empresas, mas para os próprios trabalhadores que se veem obrigados a ficar pelo menos 30 dias a trabalhar numa empresa", na qual não querem ficar, sublinha, acrescentando que "terá o efeito contrário ao pretendido, pois os empregadores, muito provavelmente, evitarão contratar por tempo indeterminado trabalhadores nestas condições, aos quais não seja aplicável qualquer período experimental".

Quanto à proibição do outsourcing, a mesma advogada considera que terá um efeito perverso. A medida, "que visaria promover o emprego, evitando despedimentos, põe em causa a melhoria do emprego e da sua qualidade, a principal bandeira da Agenda do Trabalho Digno". Na mesma senda, Eduardo Castro Marques classifica a medida de "desrazoável". "Limita, sem mais, e sem qualquer critério, a liberdade de iniciativa económica das empresas. Fará sentido que a proibição se estenda pelo prazo de um ano? E será razoável que tal prazo se aplique, indistintamente, a qualquer empresa, desconsiderando a respetiva situação económica e financeira e o contexto socioeconómico em que é concretizado o despedimento?", questiona o advogado.

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