
Apesar de ser ainda residual a quantidade de aquacultura produzida, Portugal destaca-se em algumas espécies e, sobretudo, no know-how cuja evolução nos últimos 40 anos já permite anular alguns mitos que se criaram em torno da atividade. No entanto, é no próprio Estado que a Associação Portuguesa de Aquacultores (APA) encontra as maiores barreiras para a instalação, temas que estarão em debate no seminário que irá organizar no próximo dia 10, em Peniche. Pretexto para uma revisitação do setor.
Só 2% das 600 mil toneladas de pescado consumido por ano em Portugal vêm da aquacultura. São 18 mil toneladas, um valor que a APA considera “muito baixo”, face às necessidades do mercado e ao potencial de crescimento, atendendo às condições naturais que identifica no país. Por esse motivo, Isidro Blanquet, secretário-geral da associação, lamenta os 900 milhões de euros de défice comercial português em matéria de pescado.
Portugal, apesar dos números diminutos, consegue ser líder europeu, juntamente com Espanha, na produção de pregado e de linguado ao longo da costa Atlântica, embora Espanha seja o maior produtor europeu de aquacultura, na globalidade, com 270 mil toneladas anuais.
No seu todo, a União Europeia produz 1,200 milhões de toneladas, o que representa apenas 1% da produção mundial, estimada em 120 milhões de toneladas.
A dourada e o robalo são produzidos em off-shore na Madeira e no Algarve, bem como em regime semi-intensivo nas rias de Aveiro, Formosa e do Alvor e no estuário do Sado. Nestas últimas áreas também se cultivam bivalves, como mexilhão, amêijoa e ostras - a espécie em maior ascensão no país. As águas doces continuam reservadas para a truta.
O investimento e as ostras
Mas começa a haver sinais de crescimento da atividade. Isidro Blanquet nota que, nos avisos dos fundos comunitários disponibilizados pelo Governo em novembro de 2023, foram submetidos projetos de investimento do setor no valor de 93 milhões de euros, o que, segundo revela, se traduziu num recorde.
Vários desses projetos são relativos a grandes empresas já instaladas com intenções de expansão, que, segundo a APA, apenas aguardam “alguns desbloqueios de licenciamento”.
Outros projetos dizem respeito ao cultivo de ostras, devendo por agora haver cerca de 100 empresas, que asseguram entre 3 mil e 4 mil toneladas a cada ano. Segundo o dirigente associativo, seguem maioritariamente para França, onde são apreciadas pela qualidade.
Sendo França um dos maiores produtores europeus de ostras, o que leva os franceses a preferirem as portuguesas? “As águas estuarinas em Portugal são mais ricas em nutrientes. Além disso, em França, a produção de ostras demora 2 a 3 anos, enquanto em Portugal se consegue em ano ou ano e meio, e tem uma taxa de carne muito mais elevada.”
O dinamismo alcançado na atividade ainda não tem expressão significativa em termos de emprego, devendo haver cerca de 1800 pessoas a trabalhar no setor, embora com tarefas muito diferenciadas e cada vez com maior exigência académica, envolvendo biólogos, engenheiros zootécnicos e veterinários, sobretudo, nas explorações intensivas e de bivalves.
Obstáculos e mitos
Os sinais de crescimento, no entanto, não eliminam o que o setor rotula de “grandes obstáculos” que, na opinião de Isidro Blanquet, têm a ver com “falta de conhecimento da atividade, por parte da Administração e da sociedade em geral”, e considera que “têm sido a razão para o setor não crescer como deveria e se esperaria”, a par dos “mitos que vêm dos anos 80 e permanecem enraizados nos consumidores”.
Logo à cabeça, o dirigente coloca o Instituto da Conservação da Natureza e Florestas (ICNF) por se ter tornado numa espécie de “força de bloqueio” quanto aos licenciamentos ao longo da costa. “Não está aberto ao diálogo, não procura perceber os preceitos da atividade e não muda de opinião perante os argumentos. Com isso, muitos empresários desistem e o setor fica estagnado.”
Na lista dos mitos dos anos 80 coloca em lugar cimeiro a questão dos antibióticos administrados aos peixes de aquacultura, contrapondo que a prática já só se aplica em caso emergência e apenas nas primeiras fases do ciclo de vida. “Mas, mesmo que seja necessário, o peixe de aquacultura leva dois anos a crescer, significa que tem dois anos para eliminar os resíduos que possa haver.” Por outro lado, lembra que a atividade é fiscalizada por vários organismos (DG de Veterinária, ASAE e DG dos Recursos Marinhos) que analisam os peixes, as rações e a água.
No caso das hormonas, Isidro Blanquet diz simplesmente que “não funcionam nos peixes, só nos animais de sangue quente”.
Quanto à questão de ser ou não uma atividade sustentável, rebate com vários números, em termos de consumo de alimentos, água e emissões poluentes: “Para produzir um quilo de peixe em aquacultura usa-se 1,5 quilo de alimentos; para um quilo de bifes, são precisos 8 quilos de alimentos. Em água doce, os peixes usam 1 a 3 metros cúbicos (m3) de água por cada quilo. Para se obter um quilo de carne de vaca consomem-se 15 a 20 m3. Já produzir 1 quilo de peixe emite 5 quilos de dióxido de carbono, quando 1 quilo de bife liberta 40 quilos de CO2.”
Contraria, igualmente, o mito do uso de peixes selvagens para alimentar os de aquacultura, apontando o índice FIFO, que mede a quantidade de peixe que entra na alimentação destas espécies, sublinhando que agora está nos 0,19. “Significa que usamos 200 gramas de peixe para produzir 1 quilo de peixe de aquacultura. Tem de haver sempre algo do mar na sua alimentação, por causa dos nutrientes, mas as rações já têm proteínas de vegetais e de insetos.”
A quem se opõe à produção de bivalves, lembra que “estes animais usam carbonato de cálcio para construírem as suas conchas, um elemento que sequestra o CO2”. Além disso, assinala que os bivalves também filtram o azoto resultante da atividade humana e dá um exemplo: “Toda a produção de ostras na UE retira do oceano o azoto equivalente ao que é produzido por toda a população da Holanda.”
No pressuposto de haver “certas aquaculturas que prestam um serviço à conservação dos ecossistemas”, menciona o que se passa em Portugal. Nas explorações de robalos e douradas nas rias de Aveiro, Formosa e do Alvor e no estuário do Sado, ao fazerem-se os tanques em terra, consegue evitar-se a erosão costeira, porque se vão repondo, e com isso fixam-se também aves e a atividade humana.
Cita as antigas salinas de Castro Marim e da Ria Formosa, no Algarve, como “uma das áreas onde o ICNF não tem permitido a aquacultura”, mas, a seu ver, “trata-se de estruturas criadas pelo homem, não naturais, que importaria recuperar e reconverter, e assim travar a sua degradação”.
“Com esta visão museológica, impedem que os lugares voltem a ter vida, haja atividade humana, para animais e para as plantas”, critica o dirigente.
Qualidade, ciência e contradições
E de onde vem a distinção pela qualidade da aquacultura nacional? Isidro Blanquet explica que o toque superior advém do facto de o país ser banhado pelo Atlântico, que é um oceano de águas frias, por comparação com o Mediterrâneo, por exemplo, o que garante “peixe mais magro, mais duro e com mais sabor”. Dá o caso da dourada da Madeira que costuma esgotar no mercado, apesar de ser mais cara do que as de importação.
Mas a aquacultura garante a Portugal outra posição privilegiada e que tem a ver com a “enorme comunidade científica e quantidade de estudos que se produzem, desde a nutrição, às patologias e ao impacto ambiental, por exemplo. Há muito trabalho feito, há muito know-how”.
Há, igualmente, alguma planificação e plano de ordenamento da atividade, o que à partida poderia ser visto como facilitadores dos licenciamentos, mas Isidro Blanquet tem dificuldade em aceitar como possam esbarrar com pareceres negativos de algumas instituições. E explica:
“Os planos de ordenamento são feitos pelo Estado, mas não têm a participação de todas as entidades envolvidas e, quando se vai para o terreno, os projetos esbarram sempre com um parecer de alguém que não partilha os mesmos tipos de conhecimentos e nem sequer está aberto a receber mais informação e anula tudo.”
A propósito, lembra que, no estuário do Sado, “as pradarias marinhas são beneficiadas pela produção de ostras, mas, mesmo assim, existe dificuldade em licenciar novas produções”.
Quanto ao novo Governo, o secretário-geral da APA refere que, tanto o ministro da Agricultura como a secretária de Estado das Pescas são pessoas que estiveram muito tempo ligados à UE. “Solicitamos que falem connosco para os ajudarmos a conhecer melhor o setor, falem com os produtores, porque conhecemos os problemas que é preciso resolver. Esperamos que trabalhem de forma muito estrutural com os produtores, porque só assim conseguimos fazer crescer a aquacultura em Portugal.”