Comece por imaginar uma sociedade onde cada cidadão pode expressar as suas ideias, sugestões e reclamações, sabendo que a sua opinião conta e que contribuí para a melhoria contínua, na totalidade. Imagine que tem um governo que trata todas essas contribuições (não financeiras) de forma individual e com a importância devida, criando as condições perfeitas para o exercício da cidadania, em toda a sua plenitude..Para encontrar algo assim, é necessário recuar no tempo, até à Veneza renascentista. Aqui encontrávamos espalhadas por toda a cidade, as famosas bocche di leone (bocas do leão), designadas por caixas de pedra esculpidas com a face de um leão - o leão alado de São Marcos é o símbolo de Veneza - com um orifício na boca, onde os venezianos inseriam as cartas com as suas reclamações..À primeira vista, este processo em tudo se assemelha ao atual Livro de Reclamações e aos mecanismos de proteção aos consumidores, garantidos pelo estado português, com a diferença de ser um pouco mais tecnológico à data de hoje. Contudo, é realmente só à primeira vista, pois a grande diferença residia na eficiência de quem as tratava. Durante o tempo medieval e renascentista, esta categoria de protocolo, permitiu que as opiniões dos venezianos comuns fossem levadas a sério, e isso, ajudou a criar uma república forte, onde cada uma destas reclamações, eram lidas e levadas em consideração por cada departamento de estado competente..O método das caixas de reclamações permitiu que todos tivessem uma voz interventiva. E ao partilharem o poder, as pessoas partilhavam também a responsabilidade da causa comum, sem concentrações de poder. Ética e eficiência, foram as razões para o sucesso do método aplicado..Curiosamente foram justamente estas duas palavras que caracterizaram o relatório anual de confiança "The 2020 Trust Barometer", elaborado pela consultora Edelman, que conclui - através do seu estudo -, que apenas 47% da população mundial, deposita a sua confiança nas organizações estatais..Se formos um pouco mais a fundo neste estudo, podemos igualmente concluir que os governos são vistos, pelos cidadãos, como os menos competentes e éticos, comparativamente às ONG, aos media e às empresas que lideram na forma como a confiança é hoje construída. Ora, é justamente este ponto que me leva a refletir, acerca do papel que as organizações de defesa do consumidor têm na construção de um ecossistema de consumo transparente, justo e confiável. Isto porque, nenhuma instituição estatal ou privada, que assente o exercício das suas funções na proteção e apoio aos consumidores, consegue apresentar indicadores públicos, relativos à eficiência da sua ação. É comum assistirmos à divulgação de dados estatísticos que refletem o volume de reclamações, denúncia e sugestões que coletam, contudo, nenhuma é capaz de demonstrar o impacto da resolução desses problemas junto dos consumidores, da mesma forma que o governo veneziano conseguia, em conjunto com todos os intervenientes, fossem eles os vendedores ou os compradores. O que ali importava era a razão do problema e como a solução iria resolvê-lo. Para cada problema, era pensada uma solução ética e eficiente. Nada mais!.O consumidor atual, que é cada vez mais autónomo e decisor, empoderado pela digitalização, crê numa relação entre pares, onde a partilha de experiências são consideradas as cartas de reclamação, dos tempos da Veneza renascentista..A sua confiança está assente no poder da comunidade, onde todos contribuem em prol da transparência do acesso à informação pública. Este consumidor acredita que a solução dos problemas de consumo, não necessita de intervenção jurídica, nem de mediação por terceiros. Acredita que a transparência, a proximidade e o poder da partilha, são parte da construção de uma realidade de mercado, que ditará as tendências futuras nas relações entre marcas e consumidores..Recorrendo novamente ao relatório de confiança da Edelman, conclui-se que 64% dos consumidores acredita que as marcas serão os catalisadores da mudança, resolvendo os problemas sociais e representando-os - "A minha carteira, é o meu voto". Os CEO e as inovações empresariais, trazem mais esperança ao mundo novo digital..Olhando agora para trás, após 12 anos de liderança do Portal da Queixa, consigo identificar-me com os venezianos do renascimento. Houve um momento em que necessitei de recorrer ao sistema, e este, simplesmente não me devolveu a solução. Acreditei, por isso, que um dia a comunidade poderia ser a solução. Em nada me enganei, felizmente....Pedro Barros Lourenço, CEO e Founder do Portal da Queixa e da Consumers Trust e Embaixador da Comissão Europeia para os Direitos do Consumidor