As falhas do inquérito aos consumos culturais

Publicado a

A Fundação Gulbenkian teve a boa iniciativa de promover um inquérito aos consumos culturais dos portugueses, executado pelo Instituto de Ciências Sociais. O inquérito decorreu entre os dias 12 de setembro e 28 de dezembro de 2020, tendo sido recolhidas duas mil entrevistas. Seria muito bom se este estudo viesse a ter uma periodicidade de realização, de dois em dois anos por exemplo, para aferir a evolução das coisas no setor - tanto mais que o período em que foi feito correspondeu a uma fase da pandemia em que todos os hábitos de consumo foram totalmente alterados, dos de media à frequência de espetáculos ou idas ao cinema, teatro, museus, galerias e por aí fora.

Outro ponto que merece reflexão é a falta de comparação, no caso dos media, das conclusões do inquérito com números reais, que se conhecem, do que é a evolução dos hábitos de consumo em Portugal - TV, rádio, imprensa e redes sociais. Estes números estão bem estudados no mercado português e os resultados do inquérito, pelo menos na área da televisão e rádio, as únicas que tive ocasião de ver em detalhe até agora, distorcem em absoluto a realidade. Têm de facto resultados errados em termos do que é o comportamento estudado das audiências. Nomeadamente, o que o estudo refere como consumos mais procurados na TV e rádio é completamente falso face a estudos de audiência regulares.

Por outro lado, a forma como o consumo digital está apresentado não tem em conta que hoje este é essencialmente um canal de distribuição de conteúdos de imagem, som e texto, e não um meio em si - essa noção há muito foi abandonada. Os estudos que se fazem da imprensa em Portugal - e no resto do mundo, já agora - têm em conta, por exemplo no caso dos jornais, a leitura das edições em papel e das edições online, assim como aferem o que é ouvir rádio por exemplo no carro ou por streaming em qualquer lugar. Neste particular, o inquérito realizado também distorce os resultados ao separar o digital como se fosse um mundo à parte. Seria bom que em futuras edições algumas questões básicas como estas fossem mais cuidadas para que possa existir um retrato da realidade, que o presente estudo aborda mas não reflete, pelo menos em algumas áreas, de forma exata.

O inquérito conclui aquilo que já se sabia de outros estudos setoriais: o consumo cultural em Portugal é reduzido quando comparado com outros países europeus. Ora, uma das utilidades deste estudo, se queremos reverter a situação, para além de medidas de política cultural, é que se torna crucial abordar de outra forma a comunicação dos eventos culturais.

Nesta matéria devo dizer que o que a Gulbenkian tem feito nos últimos três anos, em matéria de complementaridade na utilização do online e do offline, é exemplar e não tem paralelo em Portugal. E porquê? Por uma razão simples: ao contrário do que acontece na maioria das outras instituições, a Gulbenkian agora comunica para fora do círculo de fiéis e convertidos e tenta chegar a novos públicos. No dia em que uma nova edição deste estudo tiver em conta a realidade efetiva, ele pode ser um precioso auxiliar para que as instituições culturais revejam a forma como programam e comunicam.

Por último esbocei um sorriso ao ler afirmações de um sociólogo envolvido no estudo, José Machado Pais. Foi preciso o estudo para constatar que entre as classes A e B há adesão ao que chama "práticas culturais mais populares". Basta ver a estratificação de audiências dos reality shows da TV para perceber que desde há muito isso é assim - se tivessem analisado esses dados que há muito existem, talvez Machado Pais se tivesse surpreendido menos. O mesmo sociólogo espanta-se com a frequência das salas de cinema, sobretudo de jovens entre 15 e 24 anos. Outro sorriso: é assim em todo o mundo e por cá já há muitos anos que se sabe que a realidade é essa, existindo diversos estudos sobre o assunto. Volto ao início: que este estudo se realize mais vezes e os seus resultados sejam cruzados com outros indicadores, nalguns casos mais fiáveis, para que o retrato seja mais real.

SF Media

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt