Nos idos anos oitenta, quando o fenómeno a que hoje se chama mobbing começou a ser seriamente investigado, o seu primeiro grande teórico, Heinz Leymann, afirmou lapidarmente que o local de trabalho é o "último campo de batalha no qual alguém pode aniquilar outrem sem qualquer risco de chegar, sequer, a ser processado". Naquele comentário, Leymann destacava essencialmente que o trabalho, enquanto factor primacial de sociabilidade, é, simultaneamente, o local privilegiado em que cada um de nós pode libertar o seu potencial de agressão, humilhação, vexação, perseguição e ofensa ao outro..Temos, ao longo dos anos, estudado estas matérias em profundidade, até porque amiúde fomos sendo confrontados, infelizmente, com vítimas de assédio moral no trabalho que desesperavam por um “braço armado” que as ajudasse naquele que vinha sendo, com toda a certeza, o momento mais baixo das suas carreiras, e, muito provavelmente, um dos piores das suas vidas. Ora, traço comum a todas as vítimas de mobbing que nos “passaram pelas mãos” são as lágrimas, o terror, as insónias, o desânimo e a depressão..Sabe-se bem que uma das principais qualidades do jurista deve ser a humanidade, a qual requer, entre outros, um especial sentido de empatia e compreensão do outro. Não poucas vezes as discussões jurídicas são excessivamente técnicas, discursivamente distantes, terminologicamente frias e finalisticamente assépticas. Vive‑se, então, um paradoxo assinalável: a lei que nos obriga à generalidade e à abstracção é a mesma que tem como destinatários pessoas concretas, às quais essa mesma lei visa reconhecer algum traço de humanidade..Quando falamos de mobbing, falamos de pessoas reais – vítimas – que têm um nome e uma história, história essa cuja partilha pode em muito contribuir para que encaremos o fenómeno do assédio moral no trabalho de frente. É já altura de compreender que o assédio tem o potencial de aniquilar vidas, não escolhendo categorias, posições hierárquicas ou remuneratórias. De facto, só quem nunca teve no escritório gente lavada em lágrimas, de olhos encovados pelas noites mal dormidas, envelhecidas e emagrecidas pela dor da angústia, vergadas pela vergonha, pode estar completamente dessensibilizado face a tamanha calamidade, cada vez mais reconhecida na opinião pública..Assim, procurando fazer alguma justiça à memória destas vítimas e aos terrores pelos quais passaram, os quais talvez sirvam de exemplo e encorajamento para que outras se libertem dos seus, propomo-nos a partilhar uma história real, por nós patrocinada, com a devida modificação de pormenores identificativos..Falamos de Graça. Graça nasceu e cresceu numa família modesta do interior. A cidade e a Universidade foram o bilhete que abriu a porta do elevador social, tendo sido a primeira filha da família a licenciar-se, em ciências da saúde..Após o primeiro emprego numa farmácia dos arredores, surge o convite para o segundo, já numa posição de chefia. Ganhava sozinha mais do que o agregado familiar de seus pais. Rapidamente Graça se tornou um activo apetecível no mercado de trabalho, tendo recebido várias propostas. Finalmente, bem remunerada e numa posição de destaque, aceitou trabalho de uma das maiores empresas da capital. Durante um ano tudo correu bem: afirmou‑se, acrescentou valor à sua organização, reformulou procedimentos e tornara-se o rosto da empresa e mulher de confiança do patrão, que dela dizia ser o “seu braço direito”..Atravessava a fase mais profícua da sua carreira profissional quando decidiu ser mãe. Cedo percebeu, todavia, que a decisão de ser mãe não era bem recebida na empresa. O nascimento da filha viria a tornar-se num momento de tremenda felicidade e realização pessoal, ao mesmo tempo que marcava o início de uma longa luta contra a sua entidade patronal..Como em muitas empresas ainda acontece, a maternidade, em vez de ser facto louvado por enriquecedor, é visto como empecilho à progressão na carreira para as mulheres, quando não chega ao ponto de se traduzir em factor de segregação dentro da organização e elemento de desvalorização profissional..Graça, regressada ao trabalho, e tendo requerido horário flexível, viu-o liminarmente indeferido, tendo tal pedido sido entendido como uma afronta à empresa. Só após a intervenção da Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) logrou ver reconhecido esse direito..Todavia, acto contínuo, a relação laboral entrou em ruptura definitiva, dando lugar a uma longa e dolorosa perseguição. O patrão de Graça estava, mais do que decidido a expulsá‑la da empresa, disposto a recorrer a todos os meios necessários para, qual Maquiavel, atingir esse fim. Assim, de imediato tentou um despedimento por extinção do posto de trabalho, porém viu-o chumbado pelo CITE: Graça havia vencido a segunda batalha..Porém, o seu patrão estava apenas a começar a guerra, tendo já a nova investida preparada, desta vez “melhor” urdida. Graça viu o seu posto de trabalho de front-office alterado para um lugar na cave, foi impedida de contactar com clientes e de falar ao telefone. Foi obrigada a entregar o seu telemóvel particular à entrada no emprego. Passou a fazer trabalho de arquivo para aqueles que outrora chefiava. Deixou de ser convidada para as formações e até para o jantar de Natal. Viu o seu nome desaparecer do organigrama constante no website da empresa. Na rua, quando encontrava algum cliente era surpreendida: “Porque é que a Dra. saiu da empresa? Gostávamos tanto de si...”..Graça pediu ajuda à ACT, que, em visita inspectiva, obrigou a empresa a conceder um banco para Graça se poder sentar. Sim, Graça trabalhava todo o dia numa mesa de trabalho sem que lhe fosse facultada uma cadeira. Desconfia que tenha sido por isso que lhe apareceu uma hérnia discal..Cada vez mais isolada, Graça viu a maioria dos seus antigos subordinados e colegas de trabalho virarem-se contra si. Estava absolutamente só. Quando lhe dirigiam a palavra, era apenas para lançar insultos, provocações e declarações de incompetência, quais abutres à solta em voo picado dirigido à sua anterior posição. Apenas os estagiários lhe confidenciavam que o patrão havia proibido qualquer contacto “com essa senhora”..Em apenas um ano foi alvo de três procedimentos disciplinares, tendo o último culminado em despedimento. Desgastada, com a sua vida familiar por um fio, em prejuízo permanente da sua filha, Graça encontrou, ainda, a perseverança suficiente para mais um confronto, desta vez o último. Impugnando o despedimento, e gravando algumas das ameaças e insultos do patrão, a causa de Graça começa a ganhar repercussão pública, designadamente através das redes sociais, somando-se a cada dia o apoio de colegas e clientes. Os colegas do patrão começam a segregá-lo e os clientes do estabelecimento a censurá-lo. A comunicação social “pegou” no assunto e este tornou-se notícia, com censura na opinião pública. O patrão começa a sentir os efeitos negativos da exposição. Outros trabalhadores “dão a cara”, intentam processos judiciais, fazem queixas na ACT e reclamam direitos..O empregador sente, finalmente, que cometera um erro de cálculo e escolhera o inimigo errado. Estava a perder a guerra. Outras se avizinhavam e ameaçavam fazer ruir o império. Neste caso, o patrão soube reconhecer a derrota, pedir tréguas, propor acordo judicial e indemnizar Graça com um montante milionário. A batalha e o fausto armistício foram amplamente divulgados na comunicação social. Graça foi condignamente compensada e tornou-se um exemplo de luta para outros trabalhadores vítimas de assédio..Neste caso, a Justiça triunfou. Quase sempre, porém, ela chega demasiado tarde e o preço pago foi já incomensuravelmente elevado. Outras tantas, as vozes das vítimas perdem-se no espaço e no tempo. Há que lutar incansavelmente contra tal fado, até porque, nas calhas do silêncio, jamais a Justiça poderá ser servida..Nuno Cerejeira Namora, advogado, especialista em Direito do Trabalho