
Asubida das rendas está a forçar as famílias a recorrer ao crédito pessoal para cobrir os custos com a habitação, alerta a Deco. As despesas com a casa e com o supermercado assumem o maior peso nos encargos mensais dos portugueses e a fatura da habitação tem levado as famílias a contrair mais empréstimos ao consumo. Segundo os dados da associação cedidos ao DN, o número médio de créditos por família subiu de cinco, no ano passado, para seis em 2024. No leque, destacam-se o crédito à habitação, os créditos pessoais, os cartões de crédito e o crédito automóvel, que desde 2012 “tinha praticamente desaparecido, mas está novamente a ganhar força”.
Ainda assim, a habitação e a alimentação “continuam a ser os grandes dramas para as famílias”, aponta a Associação Portuguesa para a Defesa do Consumidor.
“Temos muitas situações de pessoas que não têm crédito à habitação e que moram em casas arrendadas, mas têm vários créditos que são, muitas vezes, contratados para fazer face às despesas ou até ao pagamento da renda. Servem, na maioria dos casos, para cobrir aquele mês de caução mais o valor da renda”, explica ao DN Natália Nunes, coordenadora do Gabinete de Proteção Financeira (GAF) da Deco.
A associação recebeu, até setembro, cerca de 20 mil pedidos de ajuda de famílias sobre-endividadas, número em linha com o ano anterior. A maioria, cerca de 75%, chega de pessoas com emprego. Os restantes 25% dividem-se, de igual forma, entre reformados e desempregados.
Olhando para o bolso de quem não está a conseguir fazer face às despesas, o rendimento médio das famílias que recorrem à Deco subiu para 1350 euros (1250 euros em 2023). A maior fatia, 60%, respeita a agregados com dois ou mais elementos e que ganham, em média, 1600 euros líquidos por mês, sendo que 1200 euros, ou seja, 75% do rendimento, destina-se ao pagamento de créditos.
Os restantes 40% correspondem a famílias constituídas por apenas um elemento cujo rendimento médio mensal se fixa nos mil euros líquidos - 700 euros são canalizados para prestações aos bancos.
“É precisamente o aumento do custo de vida que está a afetar as famílias. Ao contrário do que aconteceu há uns anos, quando o desemprego afetava o poder de compra das famílias, atualmente a maioria das pessoas que nos pede ajuda está a trabalhar. A habitação e a alimentação são as grandes dores de cabeça, com os custos em constante evolução”, enumera a representante.
Só nos oito primeiros meses do ano as famílias pediram 5,5 mil milhões de euros de crédito ao consumo, o que representa um aumento de 8,7% face ao mesmo período do ano passado, revelou, na semana passada, o Banco de Portugal (BdP). Para a porta-voz da associação, esta corrida à dívida “resulta da tentativa que as famílias estão a fazer para manter em dia as suas responsabilidades com os créditos”.
E a verdade é que arrendar casa continua a pesar cada vez mais na carteira, confirma o Instituto Nacional de Estatística (INE). A variação homóloga das rendas de habitação por metro quadrado foi de 7,2% no passado mês de setembro, indicam os dados do gabinete.
“As pessoas necessitam desesperadamente de habitação, não a conseguem encontrar, porque os preços das rendas nas grandes cidades são proibitivos para quem tem rendimentos pouco acima do salário mínimo nacional. Mas como as pessoas necessitam a todo o custo de habitação, acabam por se sujeitar a fazer os empréstimos”, enquadra a especialista.
A Deco assume que o atual cenário “é já uma nova realidade” que a associação encara com “preocupação”. “Estas famílias acabam por estar numa situação de muita fragilidade porque, por um lado, não têm, muitas vezes, direito a qualquer apoio social porque têm alguns rendimentos mas, por outro, os rendimentos que têm não lhes permitem suportar os custos com a habitação. As famílias dizem-nos que não querem ir para debaixo da ponte.
O desespero e a falta de informação acabam por levá-las a recorrer ao crédito e aos cartões de crédito. Estão claramente a agravar a sua situação”, lamenta Natália Nunes.
Empréstimos para pagar créditos à habitação
Já do lado de quem tem casa própria e contraiu crédito à habitação, o quadro não difere e a pressão para manter as despesas correntes em ordem sem entrar em incumprimento com a banca acaba por conduzir à mesma saída.
“Muitas vezes as famílias vão utilizando os cartões de crédito e o crédito pessoal para manter o crédito à habitação em dia. E isto pode ser problemático e preocupa-nos bastante”, admite.
À responsável do GAF o contexto soa a déjà vu. “Estamos a ver este aumento do número de créditos e as famílias estão novamente a fazer aquilo que já fizeram entre 2008 e 2012 [antes da crise financeira], que é recorrer ao crédito para pagar as prestações de outros créditos, para fazer face às despesas do dia a dia”, explica.
Para a Deco, esta “dívida em cima da dívida” resulta numa “bola de neve” e à associação chegam casos dramáticos. “Há situações de verdadeiro desespero, quase de fim de linha. Na semana passada recebemos uma família já com uma ação de despejo, por exemplo, sem saber o que fazer e sem capacidade de encontrar uma casa. São situações de crédito à habitação em que o banco já avançou para contencioso. Falamos de uma família com os menores a cargo e são estes casos que, infelizmente, acabam por nos chegar”, conta.
Na semana passada, o Banco Central Europeu (BCE) reduziu as três taxas de juro diretoras em 25 pontos base, decisão anunciada à boleia da desaceleração da inflação, revista em baixa para 1,7% em setembro, de acordo com o Eurostat. Este foi o terceiro corte que o regulador liderado por Christine Lagarde fez este ano.
Para a Deco, apesar de ser “uma boa notícia”, as nuvens cinzentas continuam no horizonte. “É benéfico para as famílias, mas a verdade é que elas continuam ainda com prestações elevadas, face às que tinham no final de 2021. Diria que ainda vamos ter aqui mais algum tempo de preocupação por parte das famílias para manterem as contas controladas. E até porque nem todas as prestações foram revistas em outubro”, alerta Natália Nunes.
A porta-voz da associação de defesa dos consumidores apela à “cautela” das famílias nos próximos meses e adianta que a conjuntura e a evolução da inflação são ainda “incertas”.
Deco pede que banca seja “mais responsável”
A falta de liquidez no orçamento mensal das famílias tem sido o combustível responsável pelo incremento do endividamento. Mas, para a Deco, impera responsabilizar as instituições bancárias que concedem estes créditos, que, muitas vezes, acusa a associação, emprestam dinheiro sem considerarem fatores como a idade ou a taxa de esforço.
“Temos o caso recente de uma pessoa que contraiu um crédito aos 74 anos e está com dificuldades em pagá-lo. Ssão situações que aparecem com muita frequência. Deveria existir algum cuidado na concessão de crédito, olhando para a idade e para a sua taxa de esforço”, sublinha.
Amiúde, conta a coordenadora, as famílias batem à porta da Deco “em situação de verdadeira agonia” e já num contexto onde a margem para renegociar escasseia. “Estamos a ver a banca a conceder créditos pessoais e cartões de crédito de uma forma que eu gostaria que fosse muito mais responsável”, acusa.
Às famílias, a Deco pede antecipação para evitar o desenrolar do quadro de dívida. “Mal tenham a perceção de que vão ter dificuldades em pagar as suas contas, é preciso ver onde é possível cortar. Às vezes isto é possível e em muitos casos, se fossem logo controlados, não escalavam”, apela.
Natália Nunes assume o desafio em cortar custos nos orçamentos que já vivem no limiar, mas assegura que novos créditos não são a solução. “Pedir mais um cartão de crédito ou mais um crédito pessoal só irá agravar a situação. E aquilo que era gerível, muitas vezes, acaba por não ser mais e as famílias acabam confrontadas com penhoras, por exemplo”, alerta.