BCE corta previsões sem incluir efeitos das tarifas Trump e da crise em França

Taxa de juro principal da Zona Euro desceu de 3,25% para 3%. Mário Centeno, o governador português, e quatro colegas queriam o dobro (corte de meio ponto percentual), mas aceitaram votar a favor de menos 0,25 pontos. Decisão acabou por ser unânime, revelou a presidente do BCE, Christine Lagarde.
BCE corta previsões sem incluir efeitos das tarifas Trump e da crise em França
Foto: EPA/AFP
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As taxas de juro da Zona Euro vão cair mais 0,25 pontos percentuais, colocando a taxa de referência principal (facilidade de depósito) em 3%, o valor mais baixo desde março de 2023.

No entanto, mesmo com este novo estímulo, que tenderá a aliviar o custo dos empréstimos a famílias e empresas, o Banco Central Europeu (BCE) cortou na mesma o crescimento económico previsto da área da moeda única no próximo ano, de 1,3% (projeção de setembro) para 1,1%, revelou ontem (quinta-feira, 12 de dezembro de 2024) a autoridade monetária presidida por Christine Lagarde.

E assim foi, mas com dois detalhes que podem significar, como dizem alguns analistas, que o atual cenário para 2025 seja demasiado otimista. Carsten Brzeski, economista-chefe do grupo financeiro holandês ING, até vai mais longe; diz que as novas previsões "parecem saídas de um conto de fadas".

Primeiro detalhe de que nem tudo está bem: a previsão para a evolução da atividade económica é revista em baixa, apesar de já incorporar a nova redução anunciada de juros que, cumulativamente, desde junho, já vai em um ponto percentual (em apenas seis meses). É uma descida de relevo, tendo em conta que a taxa de juro vem de um máximo de 4% atingido em setembro de 2023.

Segundo detalhe: a nova previsão dos economistas do BCE não inclui fatores ameaçadores altamente prováveis e que podem causar danos graves na Europa, como o prometido agravamento de tarifas comerciais por parte do próximo governo dos Estados Unidos, que será presidido por Donald Trump.

Em cima disto, Lagarde assumiu que esta revisão em baixa do ritmo da economia do euro (que quase estagnou, em 0,7%, arrastada pela crise alemã), não conta de todo com os efeitos da nova e ameaçadora crise orçamental em França, a segunda maior economia do euro, algo que inquieta cada vez mais os mercados e muitos analistas da economia europeia.

Na conferência de imprensa que se seguiu à reunião desta quinta-feira, na sede do Banco, em Frankfurt, a líder do BCE tentou enviar uma mensagem mais tranquilizadora, globalmente positiva, apesar da retoma esperada ser "mais lenta" do que o antecipado há três meses.

Lagarde revelou que a decisão de reduzir taxas de juro de 0,25 pontos percentuais foi unânime. Foi uma "decisão certa" com a qual "concordaram todos os membros do conselho do BCE", disse. No atual figurino do sistema de votação rotativa do BCE, votam 26 membros (Lagarde mais os cinco elementos da restante comissão executiva e 20 governadores dos bancos centrais nacionais). 

Ou seja, Mário Centeno, governador do Banco de Portugal, acabou por aceitar o que para si seria a segunda melhor solução pois, recentemente, defendeu que o ritmo de alívio monetário devia ser maior.

Em entrevista à Bloomberg, no final de outubro, Centeno defendeu que "não precisamos de nos restringir a uma métrica de descer apenas de 25 em 25 pontos base [0,25 pontos percentuais]".

"Para uma economia [Zona Euro] que passou dez anos com uma inflação média de 0,9%, para uma economia que não está a investir, para uma economia que é apoiada por um mercado de trabalho que mostra alguns sinais de fraqueza, precisamos de considerar a possibilidade de avançar em passos maiores", atirou o governador português.

Centeno não está sozinho. Segundo a Reuters, mais quatro colegas que defenderam o mesmo à mesa do conselho do BCE.

Travão no comércio mundial é um perigo

Mas Lagarde está convicta de que a decisão de ontem é a "correta" e que a inflação está quase controlada (o objetivo é ancorá-la em torno de 2%).

Acrescentou que a economia até já está a responder positivamente às novas condições de crédito e que, num futuro próximo, já no curso de 2025, os consumidores e investidores da Zona Euro vão começar a sentir mais os benefícios da estabilidade de preços e do atual ciclo de descida das taxas de juro, que começou em junho passado.

No colégio desta quinta-feira, o BCE procedeu à quarta descida de juros desde que estes atingiram o referido máximo de 4%, em setembro de 2023.

No entanto, Lagarde não conseguiu e não quis esconder o cenário sombrio que paira sobre a Europa e grande parte do Mundo.

"A economia deverá ganhar força com o tempo, ainda que mais lentamente do que antes esperado", disse a líder do BCE.

"O aumento dos salários reais deverá reforçar a despesa das famílias. O crédito mais acessível deverá impulsionar o consumo e o investimento", acrescentou.

No entanto, um senão: "desde que não se verifique uma intensificação das tensões comerciais, as exportações devem apoiar a recuperação, com o aumento da procura mundial".

A maior ameaça, como se sabe, reside no programa mais hostil ao comércio externo propalado pelo Presidente-eleito dos EUA, Donald Trump, que toma possa em janeiro.

Grandes exportadores, como a Alemanha, podem estar em apuros e ver problemas já de si graves, piorarem.

Para Lagarde, "o risco de mais atritos no comércio mundial pode pesar sobre o crescimento da área do euro, reduzindo exportações e enfraquecendo a economia mundial. Uma menor confiança poderá impedir uma recuperação do consumo e do investimento tão rápida como o esperado".

Depois, o caso francês, um país com défice público de 6% do Produto Interno Bruto (PIB) e dívida a subir e já acima de 110%. Também esse revés, que alimenta incerteza e especulação nos mercados e investidores, não foi computado nas novas previsões revistas em baixa.

O BCE faz um reparo concreto no estudo que acompanha as suas novas previsões: "Os planos orçamentais em alguns dos grandes países da área do euro não estão finalizados ou estão desatualizados, dados os atuais riscos políticos. Por exemplo, em França, os pressupostos e projeções de base da política orçamental baseiam-se no orçamento para 2025 e nos planos orçamentais de médio prazo do governo do primeiro-ministro Barnier".

"A 4 de dezembro, uma moção de censura contra o governo e estes planos foi aprovada no parlamento francês", observa Frankfurt. O governo de Barnier caiu, como se sabe. Esta sexta, o Presidente de França, Emannuel Macron deve indicar um novo nome para chefiar o executivo do segundo maior país da Europa.

Conto de fadas: "demasiado bom para ser verdade"

Para Carsten Brzeski, economista-chefe responsável pela área de macroeconomia global no grupo financeiro ING, considera que "desde a reunião de outubro, os indicadores de confiança europeus enfraqueceram e a inflação acelerou".

"As tendências estagflacionistas constituem uma situação muito desconfortável para o BCE. Ao mesmo tempo, os riscos negativos aumentaram claramente", como "os potenciais efeitos adversos das políticas económicas dos EUA nos próximos meses, a instabilidade política nas duas maiores economias da Zona Euro [Alemanha e França] e agora até uma crise de finanças públicas em França".

Segundo Carsten Brzeski, "o BCE tentou dar um quadro bastante mais encorajador da economia", mas o economista insiste: "a previsão para 2025 parece particularmente otimista".

Razões? "O BCE não teve em conta Trump e França e aposta ainda numa recuperação ao nível dos consumidores. À primeira vista, estas previsões parecem um cenário Goldilocks [um conto de fadas]: para nós, são demasiado boas para ser verdade", resume o analista do ING.

O diagnóstico do BCE

Em 2024, a economia do euro deve quase estagnar, crescendo apenas 0,7% (em setembro, o BCE dizia 0,8%). Como referido, em 2025, o crescimento real da Zona Euro será de apenas 1,1%, menos do que os 1,3% previstos há três meses, disse o BCE.

A instituição de Christine Lagarde decidiu descer taxas porque a inflação, que em 2022 chegou a ultrapassar os 10%, está a recuar de forma notória, bem como a atividade económica, com grandes economias, como a Alemanha, mergulhadas em dificuldades sérias.

Mas para Lagarde, disse e repetiu várias vezes, "o processo desinflacionista está bem encaminhado"; e isso é o mais importante.

"Os especialistas do Eurossistema projetam que a inflação global se situe, em média, em 2,4% em 2024, 2,1% em 2025, 1,9% em 2026 e 2,1% em 2027, ano em que passa a estar operacional o Sistema de Comércio de Licenças de Emissão da União Europeia alargado".

Excluindo os preços dos produtos energéticos e alimentos, o BCE prevê que a inflação subjacente seja 2,9% em 2024, 2,3% em 2025 e 1,9% em 2026 e 2027, referindo que "a maioria das medidas da inflação subjacente sugere que a inflação estabilizará, numa base sustentada, em torno do objetivo de médio prazo de 2%".

Em todo o caso, o banco central do euro avisa que embora a inflação interna esteja a descer "ligeiramente", esta "permanece elevada, sobretudo porque os salários e os preços em determinados setores ainda estão a ajustar-se, com um desfasamento substancial, à anterior subida acentuada da inflação".

Aumentos passados de juros ainda pesam

A forte subida de taxas de juro do passado recente implementada pelo BCE, que fez o custo dos empréstimos disparar de 0% em meados de 2022 para 4% em setembro de 2023 (portanto, uma subida em flecha em pouco mais de um ano), arrefeceu preços, mas também consumo, investimento e procura de crédito, como se sabe. Quase nenhum país foi poupado a este ajustamento, que é típico.

Lagarde explicou que "a restritividade das condições de financiamento está a diminuir, dado que as recentes reduções das taxas de juro estão a tornar gradualmente a contração de novos empréstimos menos onerosa para as empresas e as famílias".

Mas logo reconheceu que "as condições de financiamento continuam a ser restritivas porque a política monetária permanece restritiva e os anteriores aumentos das taxas de juro ainda estão a ser transmitidos ao stock de crédito em dívida".

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