"Porque é que alguém quereria um telefone sem teclado?!", vocifera, incrédulo, um dos grandes responsáveis pela revolução dos dispositivos móveis nos anos noventa. Mike Lazaridis, cujo génio deu origem ao saudoso BlackBerry, achava que a proposta da Apple com o primeiro iPhone em 2007 era absolutamente estapafúrdia. Removia o teclado, um elemento fundamental no formato inovador dos BlackBerries, e com isso também a satisfação do clique.
Lazaridis não conseguiu olhar para o futuro porque estava demasiado enamorado com o seu passado. A Research in Motion falhou na resposta ao iPhone e isso levou-a do topo do mercado móvel para a total irrelevância. Em poucos anos, os smartphones apelidados de "CrackBerry" porque eram tão viciantes para os seus utilizadores desapareceram do mercado. Talvez possam ser agora considerados itens de coleccionadores.
É esta ascensão e queda de uma das empresas mais importantes da modernidade tecnológica que conta o filme "BlackBerry", protagonizado por Glenn Howerton, Jay Baruchel e Matthew Johnson, que também escreveu o argumento e realizou. Howerton recebeu uma nomeação para Melhor Ator Secundário nos Gotham Awards e nos Independent Spirit Awards, cuja gala será em Janeiro, e a história verdadeira do filme - que tem momentos hilariantes de comédia tech - é tão incrível que foi transformada também em série limitada.
Numa exibição da longa-metragem em Beverly Hills, onde Glenn Howerton esteve presente para uma conversa, o moderador fez duas perguntas à audiência: primeira, quem teve BlackBerries quando eram mais vendidas que pãezinhos quentes? Muitos levantaram as mãos anuindo com a cabeça. Segunda pergunta: e quantos continuaram a usar o seu BlackBerry muito depois de ser justificável? Muitas mãos voltaram a ser levantadas.
Foi difícil, para quem se habituou à magia do email no telefone com um BlackBerry e a comunicar via BB Messenger, metê-lo na gaveta e ceder aos novos donos do mercado. Primeiro a Apple com o iPhone e depois a Samsung e outros fabricantes com Android. Aquilo que se perdeu na transição, que aconteceu rápido demais, foi a capacidade de estarmos conectados e ao mesmo tempo termos liberdade para não estarmos disponíveis.
Esse desfasamento perdeu-se com a expectativa do "always on", por ser possível usar vários canais ao mesmo tempo - SMS, Messenger, Instagram, WhatsApp, e por aí fora. Demorar horas a responder é, em si mesmo, considerado uma resposta. E essa cultura do imediatismo, que não permite tempo de reflexão e descompressão, é um dos motivos pelos quais as décadas anteriores parecerem tempos mais simples. Principalmente para quem viveu os vários saltos tecnológicos e se viu centrifugado por uma cultura que mal reconhecem, mas que é dominante.
A história contada no filme de Matthew Johnson ilustra tudo isto - e é um lembrete de como até o mais sólido domínio dos mercados pode desmoronar-se num par de anos. A Research in Motion deixou de fazer telefones e dedica-se agora a soluções de segurança. Lazaridis abandonou a liderança da empresa cinco anos depois de Steve Jobs ter revelado o iPhone no palco do Moscone Center, em São Francisco. A nova geração de aspirantes a visionários de Silicon Valley já não se lembram dele, nem de ninguém que tenha participado nessa ascensão histórica da RIM, uma pequena startup canadiana, para o topo.
Mas a nostalgia é um sentimento que ataca cada vez mais (é só ver a Geração Z apaixonada por moda dos anos noventa que todos julgavam fulminada por vergonha alheia). Isso nota-se naquilo que Hollywood tem produzido: só este ano, alguns dos melhores filmes da temporada reportaram-se a produtos icónicos que marcaram o nosso passado colectivo. "Air" (Amazon MGM) conta como a Nike assinou contrato com Michael Jordan para lançar os famosos Air Jordan; "Tetris" (Apple TV+) regressa à origem do jogo portátil que dominou o mundo nos anos oitenta; "Barbie" (Warner Bros.) dá vida à boneca que marcou várias gerações e estava em claro declínio; "The Beanie Bubble" (Apple TV+) dramatiza a absoluta loucura que foram os bonecos de peluche Beanies nos anos oitenta; e "BlackBerry", claro, sobre como a RIM chegou ao topo e caiu sem glória aos pés do iPhone.
Gostamos de romantizar tempos passados, suavizando-os na nossa memória. Mas há, quando pensamos na rapidez com a tecnologia se tornou dona do nosso tempo e nos deu um défice de atenção permanente, um motivo sólido para ter nostalgia. Os anos do "CrackBerry" eram menos crack do que pensávamos na altura.