Ele é aquele político que prega para convertidos. Não convence a mais ninguém. Está sempre a soltar frases com o objetivo de impactar o noticiário, menos pela inteligência e mais pelas aberrações do que diz. Bolsonaro, que prometeu virar "cabo eleitoral" nessas eleições de 2020 e eleger vários de seus apoiadores, sai abatido com os resultados. Não está com essa bola toda.
O Brasil passa por eleições municipais onde se elegem os prefeitos (autarcas) e os vereadores - membros do legislativo que criam leis e deliberam sobre os projetos do executivo. A grande maioria das 5.570 cidades do país já definiu seus autarcas na primeira volta das eleições, 57 delas levaram a disputa à segunda volta. Entre elas estão a cidade de São Paulo - carro-chefe da economia brasileira -, e o eterno cartão postal do país, a bela e caótica cidade do Rio de Janeiro, que há anos está a namorar com o colapso social. Chamada de Cidade Maravilhosa, há pouco sofreu intervenção do exército na segurança - e não adiantou nada, o povo não aguenta mais.
Um retrato da insatisfação do eleitor do Rio de Janeiro é o número de votos brancos e nulos que, somados, são superiores aos obtidos pelo segundo colocado na primeira volta, o atual prefeito Marcelo Crivela, apoiado pelo presidente Jair Bolsonaro. Crivela é um desastre. Pastor licenciado da Igreja Universal, só fez bobagens em sua gestão. A última foi contratar pessoas para que ficassem disfarçadas na frente de hospitais municipais para hostilizar qualquer equipa de reportagem que se aproximasse, especialmente as da Rede Globo. O esquema foi filmado e denunciado após repórteres sofrerem agressões e ameaças.
Há uma semana do primeiro turno, Bolsonaro anunciou nas redes sociais que faria seu próprio "horário eleitoral gratuito" para os candidatos que apoiaria. Um dos destaques seria o candidato à prefeitura de São Paulo, Celso Russomano, que esteve à frente nas pesquisas de intenção de voto no início da campanha, mas terminou a primeira volta a amargar um quarto lugar com apenas 10% dos votos. Sinal de que o tal horário eleitoral gratuito, atitude que está a ser questionada na justiça, não resultou.
Nas pesquisas anteriores ao pleito, um dos principais institutos de pesquisas do país perguntou aos entrevistados o que achavam da gestão do presidente Jair Bolsonaro. 42% disseram ser ruim ou péssima e as urnas comprovaram isso. Dos 59 candidatos apoiados por Bolsonaro, 45 perderam na primeira volta. Apenas 12 foram eleitos sendo que desses, apenas 2 prefeitos e 10 vereadores de cidades pequenas. Os que passaram para a segunda volta têm poucas chances de sucesso. Como é o caso do pastor do Rio de Janeiro.
Os cientistas políticos estão a debater e a procurar entender o movimento de distanciamento do eleitor ao projeto bolsonarista, mas alguns sinais já estão bastante claros. Nas eleições de 2018 havia um movimento de repúdio do eleitor à velha política brasileira. Esgotado a esperar respostas, o eleitor passou a duvidar até mesmo do sistema democrático, e quando deveria usar as eleições para depositar um voto de esperança na urna, votou com raiva. Da raiva brotou Bolsonaro, que era um nada.
Desse nada vieram os políticos radicais alçados do chamado "baixo clero" - deputados que tinham força zero nas pautas do legislativo e faziam discursos homofóbicos, racistas, negacionistas da ciência e preconceituosos, sempre ignorados pela imprensa. Espertos, observaram o ressentimento da população aos políticos protagonistas e passaram a forçar a tinta em seus discursos com promessas radicais, armamentistas, sem diálogo, cheias de ódio e foram eleitos. Mas acabaram por encontrar instituições sólidas que evitaram o desastre de se colocar em prática ações que não constituiriam avanço, ao contrário, se mostravam destrutivas.
Com a imagem em declínio, os candidatos de 2020 desse grupo radical, cuja maior liderança é Jair Bolsonaro, naufragaram sem direito a resgate, enquanto o presidente assistia sem saber como reagir. No dia seguinte às eleições, ao observar o mapa de sua derrota como "cabo eleitoral", um Bolsonaro abatido contestou o sistema eleitoral brasileiro, aquele que o elegeu: "Nós temos que ter um sistema de apuração que não deixe dúvidas. Tem de ser confiável". Era o que faltava, ele e os filhos estão a apertar essa tecla com olhos nas eleições de 2022.
Estamos a ver essa história nos EUA, país que a classe média brasileira tem como referência de vida: se é dos EUA, é bom. Bolsonaro se agarrou a Trump e passou a alegar ser "seu amigo". Ele é dos poucos líderes mundiais que ainda não reconheceu a vitória de Biden. Ele e Trump. Essa aproximação era uma aposta contra tudo e contra todos. Contra o meio ambiente, a favor das armas, contra o politicamente correto, contra os movimentos sociais, contra os negros. Bolsonaro prometia aos seus convertidos, que fecharia bons negócios com os EUA.
A indústria do aço que o diga. O governo Trump não pensou duas vezes na hora de taxar o aço e o alumínio brasileiros como medida protecionista. Muy amigo.
Em entrevista recente, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso disse: "Me tornei amigo de Bill Clinton, mas nós dois falamos inglês. É impossível ser "amigo" de uma pessoa com um intérprete no meio da conversa". Faz sentido.
Mas atenção! Bolsonaro não está morto. Ele tem um grande apoio na câmara dos deputados do grupo chamado "centrão" - que concentra tudo o que há de mais velho e retrógrado na política do país. Exatamente aquilo que os eleitores repudiaram ao votar com raiva e eleger Bolsonaro, que prometia se afastar da "velha política". Muitos desses eleitores percebem que foram enganados, Bolsonaro é a velha política. A velha política sempre tem um coelho a tirar da cartola - entenda por coelho os cargos públicos que o governo distribui em troca de apoio -, ele precisa errar muito para não ser reeleito em 2022.
O detalhe dessas eleições de 2020 é que o tamanho de Bolsonaro volta a se aproximar do que ele de facto é. Não do que ele representava, façamos aqui uma distinção: uma coisa é o que ele representava nas eleições que venceu, outra coisa é o que ele é. Bolsonaro, em sua carreira política, é um nada. Mas recebeu 57,8 milhões de votos. No Brasil de 2020 esse número diz muito mais do eleitor do que do presidente eleito. O resultado da segunda volta ainda pode trazer novas surpresas para São Paulo com a eventual eleição de um candidato de esquerda. Isso jogará mais fumaça sobre a eleição de 2022. Embora fumaça seja uma especialidade do governo Bolsonaro.