Bolsonaro ri dos "homens de bem"

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Uma eleição, como a de Jair Bolsonaro em 2018, só foi possível porque o Brasil estava sob uma daquelas tempestades perfeitas que de vez em quando afligem um dado território, num momento específico da história - crise económica, alta rejeição ao governo anterior, ação espetaculosa de juízes justiceiros e parciais, fanatismo religioso, condições ideais para a proliferação de fake news e ventos favoráveis ao populismo vindos da América do Norte.

Mas a sua chegada ao poder é ainda mais incrível se levarmos em consideração que, já em campanha, o candidato Bolsonaro prometia destruir tudo o que o Brasil tinha de bom.

Na economia, sufocar programas como o Bolsa Família, o Minha Casa, Minha Vida ou as quotas que permitiram a democratização do ensino superior em nome de um liberalismo económico que pode fazer sentido noutras partes do globo mas que num país com 500 anos de estrutural desigualdade, saído do mapa da fome da ONU meia dúzia de anos antes e onde metade dos seus habitantes não desfruta sequer de tratamento de esgoto, não pode ser prioritário.

Na segurança pública, armar a população de uma nação em que 83% dos crimes são por motivo fútil, segundo dados do Ministério Público. E prender, prender muito, para juntar mais presos aos 775 mil já enlatados em cadeias medievais, um terço dos quais à espera de julgamento, na sua maioria negros pobres acusados de tráfico de drogas leves.

No ambiente, tornar o ministério do setor refém dos interesses dos latifundiários, rever as unidades de conservação, acabar com reservas legais, desmoralizar a fiscalização, desmantelar a política climática, desmatar muito, queimar mais e até transformar a unidade ecológica onde costuma pescar ilegalmente numa "Cancún brasileira".

Bolsonaro prometia ainda acabar com a laicidade do estado, falando a torto e a direito em nome de Deus, sabe-se lá com a autorização de quem, d"Ele não será certamente.

E substituir o legado de Paulo Freire, o pedagogo brasileiro que convenceu 35 universidades do mundo a atribuírem-lhe o título Honoris Causa mas não os analfabetos bolsonaristas, obcecados com ideias malucas como filmar os alunos a cantar o hino nacional.

Além de asfixiar os tantos bons atores e músicos do país por serem, na sua maioria, seus opositores, e promover cantores de sertanejo bregas.

Até prometia acabar com os radares na estrada porque ele e a família têm horror a multas. Mesmo as cadeirinhas para bebés foram alvo da sua obstinação em tornar o Brasil numa versão tropical do Mad Max.

Não necessariamente Bolsonaro mas parte dos bolsonaristas já prometia também em campanha arrasar a ideia de que a Terra é redonda, pelo que o negacionismo na pandemia, a objeção a vacinas e a recomendação de remédios inúteis de agora não surpreendem.

No meio da agenda de destruição, no entanto, justiça lhe seja feita, Bolsonaro prometia acabar com algo terrível que ninguém até então quis ou soube acabar: o clientelismo imoral de Brasília, onde parlamentares trocam apoio aos governos, sejam eles quais forem, por nacos do orçamento.

"Quero um governo sem toma lá dá cá, sem acordos espúrios, um governo formado por pessoas que tenham compromisso com o Brasil", disse em agosto de 2018.

Neste mês, Bolsonaro investiu o equivalente a 500 milhões de euros, enquanto se recusa a prolongar o auxílio emergencial aos mais carentes na pandemia porque "o país está falido", a eleger o seu preferido para a presidência da Câmara dos Deputados. E ainda equaciona dar um ministeriozinho ou dois a essa gente em troca do engavetamento dos 60 pedidos de impeachment contra si.

"Um acordo espúrio", diria o candidato Bolsonaro.

Já o presidente Bolsonaro, que em paralelo tenta acabar com a reputação de Sérgio Moro e da Lava-Jato, ri-se sem parar dos "homens de bem" que votaram nele.

Jornalista, São Paulo

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