Calçado precisa de dois a três mil trabalhadores no imediato

Falta de mão-de-obra dificulta resposta à procura crescente da produção nacional. Salário médio no setor cresceu 40% numa década, situando-se nos 871 euros em 2019
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A indústria portuguesa de calçado encerrou 2021 com "o melhor quarto trimestre de sempre" e teve, "provavelmente, o melhor arranque de sempre em 2022", mas a invasão russa da Ucrânia está a causar grande preocupação, em especial pelos efeitos a nível energético, que arrastam todos os restantes custos de produção, admite o presidente da associação do calçado, a APICCAPS. Em entrevista ao Dinheiro Vivo, Luís Onofre diz que a indústria tem "muito trabalho", mas que precisa de trabalhadores, que não há. Fazem falta duas a três mil pessoas.

"Há uma preocupação enorme sobre o que vai acontecer nos próximos tempos. Não é tanto no imediato, porque estamos em franca recuperação, mas a médio prazo tudo isto poderá causar graves consequências, ao nível da escassez das matérias-primas e do aumento dos preços da energia", diz Luís Onofre. Para o dirigente, "é incompreensível" que o governo não tenha tido já um papel mais ativo junto do tecido empresarial, reduzindo os impostos no plano energético.

Calçado mais caro
Para Luís Onofre, com a inflação a disparar, os preços do calçado "vão inevitavelmente ter que aumentar". O empresário não avança com estimativas quanto à subida, reconhecendo que "depende muito de cada artigo", mas admite que "provavelmente, o calçado desportivo será o que terá maiores aumentos, porque tem uma grande componente de solas de borracha", um derivado do petróleo. O problema é convencer os clientes. "Os aumentos, sobretudo dos custos energéticos, têm sido brutais e influenciam muito o preço final do sapato, mas os clientes não aceitam aumentos. Não conseguem, ainda, perceber a real dimensão da situação", frisa.

Já a falta de mão-de-obra continua a intensificar-se. "Claro que é preferível termos este sufoco de trabalho a mais do que não haver [trabalho], mas isso arrasta os problemas do costume. Não temos gente suficiente para trabalhar. A falta de mão-de-obra especializada é um dos graves problemas da Europa", diz. No caso do setor em Portugal, Luís Onofre garante que há já um défice de dois a três mil trabalhadores. "O calçado foi inteligente ao ponto de não despedir ninguém na altura da pandemia, com os custos e as enormes dificuldades que isso acarretou, mas conseguimos fazê-lo a pensar, também, nos nossos colaboradores. Foi a melhor coisa que fizemos, porque a recuperação veio mais rápido do que estávamos à espera", assegura.

Aumentos salariais
Para o gestor, o salário não serve de explicação à falta de trabalhadores na indústria. "Não é por aí. Claro que os salários em Portugal são, em geral, baixos, é uma realidade incontornável e que temos todos de trabalhar para a mudar, mas o calçado tem vindo a fazer um caminho nesse sentido", garante o presidente da APICCAPS.

O empresário socorre-se dos dados do Ministério do Trabalho para ilustrar o que diz. O ganho médio dos trabalhadores do setor passou de 623 euros, em 2009, para 871, em 2019, o último ano disponível, o que representa um aumento de 40%. No mesmo período, o salário mínimo nacional aumentou 33,3%, passando de 450 euros, em 2009, para 600 euros, em 2019. Este ano subiu para o patamar dos 705 euros. "Aumentando o salário mínimo, tivemos que aumentar as restantes categorias. Não na mesma proporção, porque isso tornaria o setor impraticável, mas tivemos que dar um aumento a quase todos os escalões acima, por uma questão de princípio. Pelo menos, eu fi-lo, e acho que a maior parte das empresas o terão feito", sublinha.

Refugiados da Ucrânia
A imigração será outra das formas de ajudar a colmatar a falta de trabalhadores. Mas não só. A crise humanitária gerada pela guerra na Ucrânia levou muitas empresas a manifestarem-se disponíveis para dar emprego aos refugiados daquele país. O IEFP criou uma plataforma específica, na qual estavam já registadas quase 14 mil ofertas de emprego no início da última semana. No calçado, há 43 empresas que se disponibilizaram para dar emprego a cerca de 350 pessoas. E embora este não seja um país com tradição na indústria do calçado, isso não constitui motivo de preocupação. "Estamos preparados para os formar, com o apoio do Centro Tecnológico do Calçado. E esperamos contar com as entidades camarárias onde o setor está implantado para nos darem algum apoio na logística disto tudo, que não é fácil", diz Luís Onofre.

Mas nem tudo foi mau em tempos de pandemia. Pelo contrário. Grandes marcas que se abasteciam primordialmente na Ásia, viraram-se para a Europa. "Noto, por parte dos nossos clientes, uma procura crescente da Europa como parceiro comercial, em vez da China e de outros países asiáticos, não só pela dificuldade que agora é a nível de transportes, que aumentaram brutalmente - o transporte da China já encarece o produto substancialmente -, mas também pela dificuldade em viajar e acompanhar in loco a produção. Isto criou-lhes um certo receio e eles querem vir para cá de uma forma um bocadinho mais permanente", explica o presidente da APICCAPS.

Mas, para que, ultrapassada que esteja a pandemia e os seus condicionalismos, não haja uma debandada geral, Luís Onofre recomenda aos empresários que se protejam. "É uma das recomendações que tenho feito sempre, procurem assinar contratos de média a longa duração para que possam estar resguardados no futuro, para que, quando passar esta crise endémica, as grandes empresas não voltem de novo para a China", sustenta.

Portugal na Micam com 48 marcas
Arranca neste domingo, em Milão, a 93.ª edição da Micam, a feira de referência mundial do setor. Portugal estará representado por 48 marcas, de 35 empresas, que serão hoje visitadas pelo secretário de Estado da Economia, João Neves. Luís Onofre é um dos muitos ausentes. "Tive muita pena de sair da Micam. Foi uma decisão difícil, mas muito pensada. Canalizei todo o investimento que tinha para feiras online. É uma área em que os gastos são tremendos, mas que se tem revelado uma boa aposta", explica. Por outro lado, os seus principais clientes, nomeadamente os norte-americanos, não são ainda esperados em Milão. "Não se sentem seguros. Tudo o que seja cliente extracomunitário provavelmente não virá ainda nesta fase. E com uma guerra "às portas" as coisas complicam-se mais", acrescenta. Mas Luís Onofre promete regressar. Um dia. Nesta edição nem sequer poderá apoiar os empresários, como habitualmente, já que está ainda a recuperar da covid.

A jornalista viajou a convite da APICCAPS

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