A Lei n.º 27/2021, de 17 de maio, que aprovou a "Carta Portuguesa dos Direitos Humanos na Era Digital", entra em vigor no próximo dia 17 de julho. A ideia subjacente à aprovação da Carta parecia ser boa, ou seja, a aprovação de um documento com um elenco de direitos, liberdades e garantias na Era Digital. O resultado, esse, parece, todavia, não ter sido assim tão positivo..Na verdade, a conceção de uma Carta encerra em si um processo de preparação complexo, mas silencioso, o que, muitas vezes, cria um equívoco entre simplicidade e facilidade..No Brasil, por exemplo, o "Marco Civil da Internet", aprovado pela Lei n° 12 965/2014, que regula o uso da Internet, prevendo um conjunto de princípios, garantias, direitos e deveres para quem usa a rede, bem como orientaçõespara a atuação do Estado, demorou cerca desete anos até à sua aprovação. Muito tempo, dirão, sem dúvida! Talvez, não pudéssemos esperar tanto tempo, pois estamos a falar da vertiginosa Era Digital, onde a mudança ocorre à velocidade de um "click"..Como dissemos, a ideia parecia ser boa, mas o resultado.... Claro que sempre existirão vozes dissonantes, é inevitável. Não se esperaria, todavia, que a dissonância estivesse no mais elementar: seria realmente necessária uma Carta Portuguesa dos Direitos Humanos na Era Digital? Não, mas até poderia ter sido positivo..Quando percorremos os vinte e um artigos da Carta, que contém um catálogo de direitos, liberdades e garantias, mais uma vez, na Era Digital, somos tentados a fazer o seguinte exercício: se retirássemos o "ambiente digital" à Carta, o que ficaria? Nada de substancialmente diferente do já previsto no catálogo de direitos, liberdades e garantias da Constituição da República Portuguesa e em instrumentos de Direito internacional. Lá por não terem a palavra "ambiente digital" não significa que não se apliquemao ambiente digital, pois são normas que exigem que delasseja retirada todas a sua eficácia jurídica..Na verdade, os direitos, liberdades e garantias "offline" não são diferentes dos direitos, liberdades e garantias "online", pelo que das duas uma: ou a Carta acrescentaria valor ou o melhor seria não comprometer o que já existe e bem, podendo, inclusive, levar a sobreposições desnecessáriase a eventuais conflitos entre normas..Para ordenar ideias, elencando o que deve ser tutelado na Era Digital, não precisamos de uma Carta, mas de medidas legislativas concretas, algumas delas já em vigor e outra ainda por aprovar. Pense-se, por exemplo, no direito à privacidade digital ou no direito ao esquecimento (artigos 8.º e 13.º da Carta), ambos já tutelados pelo Regulamento Geral de Proteção de Dados; ou no uso de inteligência artificial e de robôs (artigo 9.ºda Carta), numa altura em que a Comissão Europeia e o Parlamento Europeu têm em curso diversas iniciativas e a preparação de legislação sobre o tema; ou dos direitos das plataformas digitais (artigo 14.º da Carta), que serão tutelados pela legislação europeia dos mercados digitais e dos serviços digitais; ou do direito à liberdade de criação e à proteção dos conteúdos protegidos por direitos de propriedade intelectual (artigo 4.ºda Carta), matéria em relação à qual a própria Carta refere que será objeto de legislação especial, encontrando-se o Projeto de Lei 706/XIV/2 em fase de discussão na Assembleia da República..Estes são apenas alguns exemplos, mas poderíamos elencar mais, para já não falar do polémico (e evitável) artigo 6.º da Carta relativo ao direito à proteção contra a desinformação, cuja redação parece ter passado despercebida (ou, pior ainda, se foi considerada "inofensiva") durante o processo legislativo..O artigo 6.º estabelece que "o Estado assegura o cumprimento em Portugal do Plano Europeu de Ação contra a Desinformação", até aqui tudo bem, pois encontram-se em curso um conjunto de medidas europeias que têm como destinatários as plataformas digitais e outras partes com vista à aplicação de medidas para suprir as deficiências identificadas na implementação do código de conduta sobre desinformação, bem como a aplicação de sanções. Tão-pouco pensamos que caberia à Carta definir o que é "desinformação", pois, dada a sua natureza programática, não seria o instrumento adequado para o fazer..O que já não se compreende, numa Era Digital, porta estandarte da Carta, é que tenha sido aprovada uma norma com o seguinte teor: "todos têm o direito de apresentar e ver apreciadas pela Entidade Reguladora para a Comunicação Social queixas contra as entidades que pratiquem os atos previstos no presente artigo" e "o Estado apoia a criação de estruturas de verificação de factos por órgãos de comunicação social devidamente registados e incentiva a atribuição de selos de qualidade por entidades fidedignas dotadas do estatuto de utilidade pública"..Esperemos que esta norma venha a ser tornada "letra morta", sob pena de uma Carta, que visa proclamar um conjunto de direitos, liberdade e garantias, abrir uma janela a um verdadeiro atentado a esses direitos, liberdades e garantias na Era Digital, quando uma porta, que esperemos que seja blindada, já estaria fechada e assim deveria permanecer, inviolável