Se considerarmos a indústria automóvel ou de construção, dificilmente pensaremos em cascas de limão, amido de milho ou cascas de amêndoa. No entanto, os fabricantes podem recorrer cada vez mais a estas matérias-primas à medida que a Europa procura reduzir os resíduos, tanto da agricultura como dos plásticos. No âmbito do projeto BARBARA surgiram novos materiais industriais de alto desempenho a partir de resíduos agrícolas, apontando o caminho para a intensificação da inovação na bioeconomia europeia.
Financiado no âmbito de uma parceria entre a UE e o setor privado, o projeto utilizou resíduos agrícolas, incluindo cascas de limão, amido de milho, cascas de amêndoa e cascas de romã como aditivos para biopolímeros, que ocorrem em organismos vivos, como as plantas e podem ser utilizados no fabrico.
O resultado: protótipos de peças de automóveis e moldes de construção feitos recorrendo ao saber-fazer no domínio da impressão 3D do Centro Tecnológico Aitiip, sediado em Espanha.
"Do nosso ponto de vista, o aspeto mais entusiasmante é que não há resíduos, apenas recurso", referiu Berta Gonzalvo, diretora de investigação no Aitiip, que coordenou o projeto de três anos e meio. "As peças automóveis e de construção foram validadas com sucesso, demonstrando que é possível uma economia circular, bem como contribuir para a redução do impacto ambiental".
A UE está a impulsionar o desenvolvimento de produtos derivados de materiais de origem biológica, como parte de um esforço que visa não só reduzir os resíduos, mas também reduzir as emissões de dióxido de carbono e tornar os produtos industriais mais seguros. A bioeconomia da UE tem vindo a expandir-se durante a última década, tendo atingindo 2,4 biliões de euros em 2019 e, de acordo com um estudo de outubro de 2022, conta com novas perspetivas de crescimento.
Como reflexo das elevadas expetativas para as indústrias de base biológica, em 2014, a UE estabeleceu um compromisso conjunto de 3,7 mil milhões de euros com estas indústrias para impulsionar a investigação no terreno. Seguiu-se em 2022 uma iniciativa de dois mil milhões de euros com vários intervenientes, de agricultores a cientistas, para superar barreiras técnicas, regulamentares e de mercado para produtos de base biológica. A UE produz cerca de 60 milhões de toneladas de resíduos alimentares e 26 milhões de toneladas de resíduos plásticos por ano.
De acordo com Gonzalvo, o fabrico de materiais industriais a partir de fontes renováveis, incluindo resíduos, deverá tornar-se cada vez mais relevante e os projetos como o BARBARA são apenas o começo.
Quando o BARBARA começou em 2017, só estava disponível um biopolímero para impressão 3D. O projeto aumentou o número de materiais de base biológica utilizando uma combinação de biotecnologia e nanotecnologia industriais, bem como de tecnologias avançadas de fabrico.
Introduziu novos processos para a extração e utilização de compostos, tais como corantes naturais, biomordentes que fixam corantes, antimicrobianos e óleos essenciais de romã, limão, cascas de amêndoa e milho.
O projeto BARBARA criou oito materiais contendo pigmentos de romã e limão, biomordentes de romã, fragrância de limão e cascas de amêndoa que poderiam ser utilizados em vez dos plásticos existentes. Os novos materiais conduziram a diferentes cores, aromas, texturas e propriedades antimicrobianas.
Os 11 parceiros também imprimiram protótipos de revestimentos de portas e um painel de instrumentos para a indústria automóvel, bem como um molde para uniões de treliça para o setor da construção.
Os novos materiais apresentam melhores propriedades mecânicas, térmicas e até estéticas. Como resultado, podem ser utilizados para melhorar a qualidade do material final, e até para adicionar uma cor ou fragrância.
Embora o projeto tenha terminado, os participantes esperam que a tecnologia possa avançar para a fase de demonstração nos próximos quatro a cinco anos. Tal demonstraria as possibilidades de produção em grande volume.
Com a indústria mundial de biopolímeros a crescer 6 % e o setor europeu a expandir-se 30 % anualmente, Gonzalvo afirmou que a UE se encontra numa posição privilegiada para liderar o caminho.
"Estamos um passo mais perto de uma verdadeira economia circular", afirmou. "Os resíduos podem ser um recurso e não apenas resíduos", acrescentou.
No que se refere aos plásticos, as perspetivas da investigação também parecem promissoras. Segundo a Comissão Europeia, na Europa, apenas 14 % dos resíduos plásticos foram reciclados internamente em 2020. Os restantes 86 % foram incinerados, depositados em aterros, espalhados pelas ruas ou exportados, salientando a necessidade de estabelecer um sistema mais sustentável.
Uma vez que a produção de plásticos deverá aumentar a médio prazo, a redução da sua pegada ambiental é ainda mais importante. O projeto ECOXY, financiado através da mesma parceria público-privada do projeto BARBARA, procurou alternativas de base biológica para os plásticos conhecidos como «compósitos termoendurecíveis reforçados com fibras» ou FRTC.
Embora os FRTC sejam leves e resistentes, carecem de credenciais ecológicas. Além de serem derivados de combustíveis fósseis, não podem ser reciclados e são frequentemente fabricados a partir de materiais tóxicos, incluindo um composto químico desregulador do sistema endócrino chamado bisfenol A.
"Os compósitos reforçados com fibras estão a ser cada vez mais utilizados, pelo que estes compósitos de base biológica devem ser capazes de os substituir em todos os campos onde são utilizados", afirmou Aratz Genua, investigadora do CIDETEC, um instituto espanhol que coordenou o ECOXY.
O projeto, que decorreu em paralelo com o BARBARA, incluiu um consórcio de 12 parceiros de investigação e do setor industrial de toda a Europa.
Tomaram como ponto de partida os materiais considerados como estando em conformidade com os três R: recicláveis, remodeláveis e reparáveis. Embora estes materiais 3R já tivessem sido patenteados pelo CIDETEC, tinham um aspeto negativo.
"Conseguimos torná-lo mais sustentável, mas ainda estávamos a trabalhar com produtos derivados do petróleo e o mais utilizado é derivado do bisfenol A», referiu Génova. «Tivemos a oportunidade de dar mais um passo em frente e torná-lo mais sustentável através da utilização de bio-resíduos para criar FRTC de base biológica".
O consórcio recorreu à lignina, derivada de madeira e fibras vegetais. Utilizou resina de base biológica proveniente da lignina com fibras de linho como reforço para fabricar um demonstrador, neste caso o painel do banco traseiro de um automóvel.
"O facto de termos sido capazes de sofisticar e fabricar um demonstrador foi realmente bom", afirmou Génova. "Começámos com pequenas quantidades de materiais e demonstrámos que estes são utilizáveis a uma escala intermédia".
O verdadeiro desafio era garantir que o novo material teria propriedades comparáveis aos que estão a ser utilizados atualmente.
De acordo com Génova, as resinas de base biológica demonstraram propriedades muito boas, equivalentes às dos derivados de combustíveis fósseis. No entanto, existe a possibilidade de melhorar a resistência das fibras de linho.
A investigação futura poderia incluir a exploração da utilização de fibras de carbono de base biológica, também extraídas da lignina.
"Continuaremos a trabalhar no desenvolvimento e otimização de resinas 3R de base biológica para diferentes aplicações", disse Genua. Por exemplo, o projeto BIO-UPTAKE está a trabalhar em painéis de teto para a indústria da construção.
"Nestes casos, será utilizada não só fibra de linho, mas também fibra de carbono de base biológica", acrescentou Genua.
A curto prazo, os novos materiais são melhores para a saúde dos trabalhadores que os manuseiam durante o fabrico. A longo prazo, o ambiente beneficiará graças, em grande parte, à consequente redução dos resíduos.
A investigação neste artigo foi financiada pelo Conselho Europeu de Investigação (CEI) da UE. Este artigo foi originalmente publicado na Horizon, a Revista de Investigação e Inovação da UE.