
Mário Centeno, doutorado em Economia pela Universidade de Harvard, está à frente do Banco de Portugal desde julho de 2020, vai fazer quatro anos. É um dos 26 membros do conselho do Banco Central Europeu (BCE), composto pelos governadores dos 20 países do euro, mais os seis membros da comissão executiva presidida por Christine Lagarde. Nasceu em 1966, no Algarve, é um economista com muita investigação feita sobre o mercado laboral, foi ministro das Finanças nos dois primeiros governos do Partido Socialista, de António Costa, do final de 2015 a meados 2020. Do começo de 2018 até cessar funções como governante, foi presidente do Eurogrupo, o poderoso conselho informal dos ministros das Finanças do euro. Primeira parte da entrevista "A Vida do Dinheiro", pelo Dinheiro Vivo e pela TSF.
A taxa de inflação estimada no mês passado, em janeiro, na Zona Euro, pelo Eurostat, foi na casa dos 2,8%. O BCE tem uma meta de médio prazo de 2%. O que é preciso mais para chegarmos a este objetivo?
É um trajeto que estamos a fazer de forma sustentada. Todos os indicadores que temos mostram que a inflação tem vindo a baixar. Na verdade, a um ritmo que é mais rápido do que aquele que subiu. Foi um processo inflacionista muito forte, que nunca tínhamos vivido no período do euro na Europa. E, portanto, foi necessário reagir. O Banco Central Europeu teve de subir as taxas, todos sabemos o efeito que isso tem e também estamos atentos a todo este processo de descida. O que é necessário para que o ciclo de política monetária continue é que tenhamos confiança no grau de permanência deste processo, que os próximos meses, estou certo, trarão, se não acontecerem, entretanto, mais choques adversos daqueles a que, infelizmente, assistimos há uns anos e que levaram à subida dos preços.
Esta semana saiu o novo inquérito aos consumidores feito pelo BCE. Há uma revisão em alta da inflação esperada para o longo prazo, até 2025, para 2,5%. O que é que isso sinaliza para si?
Estamos atentos a um número muito grande de indicadores e seguimo-los de forma muito cuidada. As expectativas são muito importantes, porque a política monetária trata precisamente de gerir expectativas. Temos um objetivo de 2% para a inflação no médio prazo. E, portanto, ancorar as expectativas no médio prazo, e ancorar significa tê-las firmemente próximas de 2%, é crucial para a condução da política monetária. Por isso, retomando a primeira pergunta, o mais importante para nós é a trajetória e não exatamente o valor concreto de um mês de inflação. E, por isso, podemos dizer hoje que estaremos próximos dessa inversão da trajetória da política monetária.
A trajetória é mais importante do que a meta?
A meta atinge-se no futuro próximo. Vamos falar abertamente: o corte das taxas de juro não se dá apenas quando a inflação atingir 2%. Não é assim que funciona, porque sabemos que há uma convergência para esse valor. E, desde que essa convergência esteja ancorada, esteja firme, seja sustentada, a política monetária pode e deve reagir. É evidente que todo este conjunto de indicadores que seguimos, as questões de confiança, as expectativas dos consumidores, como há pouco referiu, são indicadores importantíssimos. Mas valem no seu conjunto. A economia da área do euro não cresce há cinco trimestres. Está a entrar no sexto trimestre, que é este primeiro trimestre de 2024, em que posso usar a expressão que o crescimento ainda é um desafio. Não esperamos números que indiquem claramente que a recuperação começou.
Os riscos para o outlook [cenário] são negativos também?
No curtíssimo prazo, sim. No médio prazo são um pouco mais otimistas e positivos. E isso também nos dá algum alento de que o processo possa inverter-se no tal médio prazo, não no primeiro trimestre deste ano. O segundo, temos de ver bem como é que entramos nele. O que é importante é que a política monetária possa ser credível, sempre. É absolutamente essencial, não há gestão de expectativas se a política monetária não for credível. O fator mais importante de credibilidade da política monetária é a nossa determinação em combater a inflação, porque a inflação tem efeitos negativos superiores àqueles que poderíamos esperar do aumento das taxas de juro. A economia, no cenário base, não tem uma recessão, mas está estagnada. E se a economia está estagnada, significa que a procura está estagnada e a transmissão de todos estes efeitos aos preços é algo que, em termos económicos, é quase inevitável. E isto também está por detrás desta desaceleração, deste processo de desinflação. Não é deflação, é desinflação, que é a redução da inflação que temos observado. E isso é crucial que se mantenha e que possa estar refletido em todos os números.
O BCE sente menos pressão agora que o trabalho passado está a surtir efeitos na atividade?
Esse é um efeito de desaceleração da atividade, que vem muito através do crédito, a política monetária transmite-se à economia, por exemplo, dessa forma. Temos, em Portugal, e temos na área do euro, valores de crédito que estão muito abaixo dos níveis de há uns anos. Em termos reais, se deflacionarmos o valor do crédito, esse comportamento negativo ainda é mais evidente. As nossas políticas são estabilizadoras, não são políticas pro-cíclicas ou que possam elas próprias promover ciclos económicos mais acentuados. O que significa que a política monetária deve estar calibrada para não fazer demais. Porque se fizermos demais, podemos ter um efeito perverso na inflação, ela descer para lá dos 2%, e isso é algo indesejável. Por isso também temos de ter alguma paciência. E a primeira pergunta que me fez vai, aliás, muito nesse sentido, que é quando nos começamos a aproximar de 2%, é natural que o ritmo de redução da inflação, ele próprio, fique menos acentuado. Vamos convergir para 2% no tal médio prazo, estando já hoje abaixo de 3%, e já não é o primeiro número de inflação abaixo de 3% que temos, mas essa convergência torna-se mais lenta.
Como é que vai funcionar esse sistema de vasos comunicantes entre descida da inflação e das taxas de juro? Vai demorar mais a descer as taxas de juro do que levou a subir?
É difícil ver a rapidez com que este processo se dá. Preferiria que as taxas descessem de forma gradual, sem hesitações, do que à pressa. Até porque, normalmente, quando os bancos centrais têm de agir de forma mais rápida, significa que alguma coisa não está a correr exatamente bem. Relembro a rapidez com que o BCE teve de agir em 2008 e depois em 2011, 2012, em face dos processos recessivos na área do euro. Se conseguirmos estabilizar a inflação e a economia e prepará-la para a recuperação de forma gradual, damos tempo aos agentes económicos para absorverem esta mudança, para se readaptarem à nova realidade. Deixe-me só acrescentar aqui um ponto, que não é técnico, mas é um pouco mais específico. Podemos dividir este processo de subida, que foi muito rápido, e como nunca antes tinha sido - durante 14 meses subimos 450 pontos de base a taxa de juro de política monetária -, mas parte deste trajeto foi para trazer a taxa de juro de valores negativos, muito indesejáveis, para valores próximos daquilo que é, vou chamar-lhe, a taxa de equilíbrio. Chamamos-lhe a taxa neutral, que andará em torno dos 2%. Portanto, não vamos trazer a taxa de juro, de novo, para valores muito baixos. Desejavelmente, a taxa de juro, quando começar a descer, não seguirá um processo até valores próximos do que existia antes deste processo inflacionista, porque esses valores são considerados, na verdade, até perversos para o crescimento económico e para a estabilidade financeira na área do euro. E armadilham todo o processo do BCE e também dos agentes económicos. Quando dizemos que a taxa de juro vai começar a descer, ela irá descer, não vai retomar valores anteriores, mas vai estabilizar, idealmente, próximo de 2%, a referida taxa neutral.
Pode ler a segunda parte da entrevista aqui: https://www.dinheirovivo.pt/6983442127/apos-as-eleicoes-e-preciso-qualidade-politicos-nao-devem-por-em-causa-trajetoria-das-politicas/