Cidadania em causa própria

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Tem morrido gente a mais que me marcou pela moderação e pela sensatez que os caracterizava. Admiro cada vez mais a moderação e a sensatez do que outras qualidades mais estridentes e emblemática e menos discretas. Têm sido padres: António Vaz Pinto, Vítor Feytor Pinto, o Padre Dâmaso. As vidas deles são sobre isso, sobre pontes construídas, obras feitas, problemas resolvidos.

Vem isto a propósito da família Mesquita Guimarães. Em toda esta sucessão de tristes acontecimentos predomina a falta bom senso, a falta moderação e de outra coisa que abundava na vida dos padres que tanta falta nos fazem: sabedoria. Os pais de Famalicão assumiram uma cruzada contra um Estado, uma escola, que não consideram dignos e capazes de cuidar dos seus filhos. Sabiam perfeitamente as consequências dos seus atos, as feridas que essa batalha certamente causaria nos seus filhos. Mas foram, de peito feito, à guerra.

Não sei se aquilo que os moveu foi a defesa da sua família ou uma espécie de sacrifício que achavam que estavam a fazer por todas as famílias que pensam como eles levando os seus filhos como cordeiros de sacrifício. Ou seja, se atuaram em causa própria ou por um bem maior.

O problema desde o início foi o conteúdo de uma disciplina obrigatória. Agora imaginem que os rapazes não eram excelentes alunos, imaginem que a disciplina não era Cidadania, imaginem que a religião era outra. E imaginem o precedente que este caso abriria se fosse aceite pelo sistema. Maus alunos, alunos muçulmanos a recusarem participarem na disciplina de Biologia ou de Educação Física, por exemplo, faria sentido? O consenso seria o mesmo entre os apoiantes da família de Famalicão?

Mas a verdade é que alunos de etnia cigana, alunos de religião muçulmana - seguindo os critérios e o raciocínio da família Mesquita Guimarães adaptados à sua realidade - têm muito a reclamar sobre o nosso sistema de ensino, os programas ou os currículos. O que não lhes faltam são razões para alegar objeção de consciência e para deixar os meninos em casa. Seria isto justo? Claro que não. E não seria porque não existem disciplinas, nem escolas à medida. No entanto, o que nesta batalha sempre se reclamou foram os direitos dos bons alunos de Famalicão e não a natureza, a existência ou a revisão dos conteúdos da disciplina.

A disciplina Educação para a Cidadania é obrigatória e, no meu entender, deve existir como obrigatória. Sim, tem um programa que é uma aberração e que deve ser alterado urgentemente. O seu conteúdo deve ser consensual e aquilo que não for deve ser deitado fora. Não é complicado - é só bom senso. Mas a alteração não tem como fundamento o percurso escolar dos Mesquita Guimarães. É principalmente porque faz falta uma disciplina onde se debatam temas ligados à cidadania - ambiente, sistema eleitoral, comportamento cívico, etc.

Sim, os alunos de Famalicão devem fazer a disciplina porque é obrigatória. É só isso. Foi sempre isso. Por outro lado, os partidos, a comunidade educativa, as associações de pais, a chamada sociedade civil, deve e tem de fazer tudo o que estiver ao seu alcance para alterar os conteúdos abjetos da disciplina de Cidadania. Há mecanismos: chama-se Democracia. Uma alteração urgente por uma questão de bom senso, porque quando se leva situações a limites extremos só resta o bom senso como resposta.

Jurista

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