Cláudia Pimentel é desde 2015 secretária-geral da Associação Industrial e Comercial do Café, herdeira do Grémio Nacional de Torrefatores. É ainda a cara de projetos e marcas como Portuguese Coffee e Lisbon Coffee Fest, bem como o mais recente projeto de recolha e reciclagem de cápsulas. Licenciada em Gestão pela Católica, iniciou a carreira na Arthur Anderson e tem um percurso profissional multifacetado. Há quase uma década assumiu o leme da AICC, criada em 1974 e que representa 90% da indústria de torrefação, moagem e empacotamento de café, bem como da comercialização do café, misturas, sucedâneos e solúveis em Portugal.
O último ano foi particularmente duro para a indústria do café, com os contentores a demorarem mais de 3 meses a chegar e o preço a quintuplicar, por causa da inflação e interrupção das cadeias logísticas, mas também devido às alterações climáticas. Os preços chegaram a máximos?
Os preços do café verde são colocados em bolsa e a Associação não tem intervenção nisso, mas fruto daquilo que disse, sim, o café verde passou a preços históricos. É uma matéria-prima fundamental para nós e passou a preços muito mais altos.
De que ordem, mais ou menos?
O café verde chegou a aumentar 25% e os nossos torrefatores, obviamente, foram prejudicados.
E isso foi traduzido para os consumidores, esses 25%?
Não, o café tem-se mantido com o preço de venda ao público mais ou menos estável, mas cada empresa fará os seus preços.
Mas como é que se vê na Associação essa evolução? É uma tendência que se mantém - e pode dificultar o negócio?
Sim, o preço do café verde passou a ser mais instável. O clima trouxe alterações a todos os produtos agrícolas e além disso os fatores de produção, desde a embalagem à parte logística, também aumentaram bastante, portanto os produtores de café têm essa preocupação de controlar muito os custos para não fazer subir o preço final.
A pandemia trouxe também novas tendências de consumo?
Sim, alterou bastante o tipo de consumo. A restauração esteve fechada, ou intermitente, e os portugueses, que eram o país do mundo que consumia mais café fora de casa, tiveram de reconverter-se. O consumo dentro de casa aumentou bastante, cerca de 25%, e com a reabertura da restauração, em 2021, o consumo de café voltou à rua mas nunca se perdeu totalmente o hábito de beber café em casa.
Então reforçou-se, passámos a beber café fora e em casa?
Sim, e há um efeito engraçado. O chamado slow coffee - aquelas máquinas de expresso em que pomos o grão, moemos e fazemos o café - era uma tendência que estava a instalar-se devagar e passou a ter muito mais interessados, tal como o café de saco e as formas de extração diferentes, voltou o café de filtro, voltou um café mais devagar.
Mais do que hábito, os portugueses apaixonaram-se pelo café?
Sim, ao hábito social - as pessoas vão beber café para saber as notícias, saber dos vizinhos... - passaram a degustar o café como produto alimentar de valor; e o slow coffee e os cafés premium ganharam terreno. Mesmo o consumo de cápsulas em casa aumentou brutalmente e a percentagem de máquinas dentro dos lares portugueses é muito maior do que no resto da Europa.
Mas quanto café bebe cada português?
A média são dois cafés e meio por pessoa/dia. Claro que há pessoas que bebem cinco e outras que não bebem nenhum, mas 80% da população portuguesa bebe café.
E o português é mais arábica ou robusta?
O arábica tem menos cafeína, o robusta tem mais, e os portugueses, por tradição, consomem um blend, uma combinação de ambos. Durante muitos anos, tivemos café de Angola, que era essencialmente robusta - e é o que traz mais creme, portanto as pessoas gostam mais, com essa mistura. Um café 100% arábica não é apreciado pela maioria dos portugueses, nem tem aquele creme da nossa bica. Daí o nosso café ser único e ser diferente. Também o nosso processo de torra é diferente. A torra leve é usada para filtro, depois há a torra carregada, típica do café italiano; o nosso tem uma torra média e é torrado lentamente, por isso fica mais uniforme e conseguimos extrair alguns paladares e cheiros que o café italiano não apanha. Os portugueses foram desenvolvendo isto ao longo dos anos e por terem convívio com tantas origens diferentes - Cabo Verde, Angola, Brasil, etc. - combinaram vários tipos de café com vários tipos de torra. Por isso é que quando viajamos sentimos a falta do nosso café: nenhum é igual ao nosso.
E isso conta na exportação?
Sim, desde 2015, as exportações têm subido sempre, até durante a pandemia. Chegaram a subir a dois dígitos, graças ao trabalho fantástico das nossas torrefatoras, que têm apostado na exportação e na qualidade. E temos ganho muitíssimo com o turismo. O turista que vem a Portugal adora o café e o pastel de nata, faz parte, passam a conhecer o nosso café e passam a gostar. Isso tem facilitado a exportação. Por outro lado, as empresas portuguesas cada vez são mais internacionais e os mercados têm-se aberto. O consumo tem crescido por exemplo no mercado asiático, que é um mercado do chá. Mas os nossos maiores consumidores estrangeiros são Espanha, França e Reino Unido. E Espanha passou por uma transformação, porque até há poucos anos, efeito da guerra civil, misturava melaço no café para fazer render, e os espanhóis apreciavam; mas também eles estão a alterar o seu perfil de consumo e Portugal tem vindo a ganhar terreno nas exportações. Depois há alguns mercados que estão a revelar-se mais difíceis, nomeadamente a Ucrânia e a Rússia, que eram fortes adeptos do café português.
Então, as exportações já vão além do mercado da saudade?
Já, já, sim. O mercado da saudade foi o início e terá com certeza uma influência grande, mas as nossas exportações vão bem além.
Mas estamos a falar de que valores? Que percentagem do café que se produz aqui é vendida para fora?
Em 2021 exportámos cerca de 18 mil toneladas. O nosso consumo nacional é à volta de 60 mil. Mas o que temos visto é que o nosso café é cada vez mais valorizado. Em termos de valor acrescentado, o preço tem subido. De qualquer maneira, o nosso consumo em 2021 foi inferior a outros anos, devido à pandemia. Agora, com o turismo a reabilitar-se, as pessoas a saírem mais, este ano provavelmente voltaremos a ficar perto das 70 mil toneladas.
E tem subido com que proporção?
É muito variável. Nos anos de 2017 e 2018, as exportações cresceram à volta de 20%; nos últimos anos foi menos, mas o mercado externo estava mais parado.
E há mais adeptos das cápsulas?
As cápsulas cresceram 20% em pandemia - era um consumo fácil, imediato, limpo, que as pessoas gostam. E daí nós na Associação, desde 2018, estarmos a estudar a problemática da reciclagem. E acelerámos este estudo para implementar o projeto, porque temos consciência de que o consumo de cápsulas tem crescido e há que arranjar uma solução mais universal, além das que algumas marcas próprias que já tinham.
Criou-se de repente um problema de sustentabilidade?
O problema sempre existiu e nós há muitos anos que o tentamos resolver com a Sociedade Ponto Verde e outras empresas ligadas ao setor da reciclagem. O problema era que nós queríamos as cápsulas incorporadas no Ecoponto Amarelo e logo se colocou o primeiro problema: a cápsula não vai vazia para o lixo, tem um conteúdo orgânico. Mas não seria o problema maior porque mesmo não sendo embalagem poderia ser a tal fração percentual mínima que pode ser integrada. Depois vinha outra questão: as plataformas de reciclagem não estão preparadas para receber resíduos pequenos - cotonetes, tampas, caricas, cápsulas - porque o lixo chega à planta de triagem e é posto num tapete rolante, passa por um crivo, uma rede cuja malha é diferente de cidade para cidade. E as cápsulas também têm dimensões diferentes. Portanto, a maioria das cápsulas caía no refugo, e ia para aterro...
O trabalho do consumidor ia para o lixo.
Exatamente. Então tentámos com a Efacec um equipamento de leitura ótica que separava de facto as cápsulas todas e todos os resíduos pequenos com sucesso de 87% nos tapetes de triagem, mas continuávamos a ter o problema das redes largas, e acabámos por desistir do Ecoponto Amarelo. Isto foram anos... até percebermos que a melhor solução era fazer um sistema dedicado, mais próximo do consumidor, e falámos com os municípios para se criar o Capsulão à porta de cada cidade e consumidor.
Isso foi testado em Cascais e vai agora alargar-se ao país?
Começámos em Cascais em novembro com ecocentros móveis e fixos, que vão estando, consoante os dias, em determinadas zonas e onde as pessoas podem colocar as cápsulas. E temos tido uma adesão razoável, sobretudo quando fazemos campanhas de comunicação: nestes primeiros meses recolhemos 3,3 toneladas.
E o que fazem a essas cápsulas?
Elas são depois transportadas para o reciclador, o reciclador separa plástico de alumínio - e este sistema composta todo o tipo de cápsulas, apesar de ser comportado apenas por seis empresas - e depois isto é triado entre plástico e alumínio. O alumínio é 100% reciclável e volta a ser usado para fazer objetos do quotidiano. O plástico é usado para fazer um granulado que depois serve para fazer mobiliário urbano, aquelas passadeiras das praias e outras soluções do não alimentar. E a borra é convertida em composto orgânico para fertilizar terras. Agora vamos levar isto ao país, começando dia 20 em Guimarães, depois Lisboa em meados de julho e vamos alargar a outras câmaras para que o consumidor se habitue a levar as cápsulas a estes locais, ainda que as marcas que têm reciclagem própria ou pontos de recolha próprios os mantenham. Nós tivemos uma reunião com o ministro do Ambiente sobre o nosso projeto, que foi muito bem recebido, mas ele pediu-nos isso, que pelo menos numa primeira fase, já que os sistemas das marcas próprias estão a funcionar, se mantivessem até este projeto estar totalmente implementado.
E as cápsulas não podem voltar a ser cápsulas?
Nós gostávamos e está a ser feito um estudo nesse sentido, mas é muito complicado, porque quase todos os plásticos para uso alimentar precisam de certificação muito específica - por isso o plástico reciclado para uso alimentar é diminuto em todos os setores. Mas o plástico pode ser reciclado para embalagens de detergentes, mobiliário urbano, etc.
Mas como é que se gere esta logística da recolha, do esvaziamento dos capsulões, etc.?
A instalação fica à cargo de cada câmara, que tem já os seus ecocentros e cria um contentor próprio para as cápsulas; depois o responsável pela recolha dos resíduos leva-as e armazena no espaço próprio que as câmaras têm ou contratam até uma quantidade mínima de 20 toneladas ou seis meses e então nós transportamos para o nosso reciclador - porque queremos que a pegada carbónica do transporte seja mínima - que faz então a tal triagem e finalização. Queremos alargar isto ao máximo de concelhos. A reciclagem só existe se nós, consumidores, pusermos as coisas no sítio certo.
No ano passado, a União Europeia aprovou um regulamento sobre as cadeias de abastecimento estarem livres dos impactos da desflorestação. O café é uma indústria intensiva... A indústria do café já se adaptou?
O regulamento está em debate, mas sim, nós fazemos parte da European Coffee Federation, que tem acompanhado não só a legislação mas toda a parte da cadeia de valor. O café, dentro de todos os produtos visados por essa legislação, é até o que tem menos impacto - soja e todos os outros têm mais. Mas vai ter de haver um certificado.
Um selo.
Sim, no fundo é um rastreio de onde veio o café. Hoje todas as produções de café têm essa preocupação, é uma questão de organização. Os principais prejudicados vão ser os pequenos produtores, que terão dificuldade em arranjar essa certificação , por isso nós e outras associações internacionais de que fazemos parte estamos a tentar ajudar os produtores locais a preparar-se. Nós compramos em bolsa e o café não vai para a bolsa se não tiver esses certificados, portanto isto é uma questão complicada para o produtor local. Para quem compra, eventualmente terá impacto só no preço.
Mas, por exemplo, geografias como o Vietnam - o principal fornecedor de café a Portugal - não terão dificuldades?
Não, não. Todos esses países estão muito organizados. É uma cultura muito importante para eles e tem muito peso nas exportações. Há países desse género que têm quase ministérios para o café, portanto não é tema. É um problema para os pequenos produtores locais até conseguirem chegar às pessoas certas para ter essa certificação.
Mas o mercado bolsista consegue obter essas certificações?
Sim, sim. Através das associações locais de produtores, como todas as certificações (até sanitárias). O café é hoje um produto muito controlado em termos de certificações e tem muitas ONG a ajudar na organização, na escolarização das populações, etc., esse trabalho tem sido desenvolvido ao longo de 30 anos.
Há também aqui uma questão ao nível dos direitos humanos, por exemplo, as questões de escravatura ainda são um tema?
Todas as empresas tentam rastrear, mas é complicado, até por questões culturais.
Ainda há escravatura nas plantações de café?
Que eu tenha conhecimento, não. Há trabalho infantil? Eu diria que não, mas existe nos pequenos produtores uma atividade comunitária em que pais e filhos, independentemente de irem à escola, ajudam na lavoura. Como acontece cá, por exemplo em Trás-os-Montes - eu sou transmontana e posso atestá-lo.
É um hábito cultural.
Exatamente. Não vamos ser hipócritas e dizer que é trabalho infantil. Não é. É uma forma de cultura, de passar os conhecimentos aos mais novos. Estou a ser politicamente incorreta, mas o mais honesta possível. Não podemos ver tudo a preto e branco.
Mas como é que a indústria lida com esta questão da sustentabilidade social e ambiental?
A indústria tem muita preocupação e cuidado. Aliás, as grandes empresas portuguesas têm esse cuidado, tentam montar escolas, educar as pessoas. Existe até um programa de escolaridade dos agricultores já adultos, porque muitos não sabiam ler e escrever. E também lhes damos competências para saber mais sobre o produto que estão a tratar - daí a qualidade do café também ter vindo a subir ao longo dos anos, porque cada vez mais as pessoas têm ferramentas e conhecimentos para tratar melhor as culturas. A indústria do café é muito sensível a estes temas e está atenta a estas questões.
E a digitalização também já entrou nestas culturas?
Na parte do rastreio, sim. O resto é mais rudimentar. Mas a preocupação, mais do que a parte digital, é a parte humana e a ambiental. E as pessoas, as gerações mais novas, já têm outra capacidade e facilidade de lidar com estas coisas em todos os cantos do mundo.
E a associação também tem aqui um papel de sensibilização e de pedagogia?
Sim, nós fazemos parte da European Coffee Federation e da ICO, a Organização Internacional do Café, e ambas acompanham de perto os produtores, sempre atentas a essas problemáticas. E quando acontece alguma coisa menos boa, passamos essa informação aos associados e alertamos para problemas que possa haver. Mas desde que estou na associação, as condições só têm vindo a melhorar. Nós temos relatórios anuais da ICO e todas as condições de trabalho e todas as condições de funcionamento do setor têm vindo a melhorar. Até guerras que houve no passado têm estado a desaparecer em algumas áreas onde o café é importante. Portanto, graças a Deus, é um setor que só tem sofrido com as intempéries. O clima às vezes deixa-nos com colheitas menos boas, mas de resto, em termos sociais, estamos mais descansados hoje do que estávamos no passado.