Confrarias preservam tradição e são catalisador económico

Promover, valorizar e preservar o património cultural e gastronómico nacional é a missão das confrarias que, em Portugal, são perto de uma centena. Entre comes e bebes, feiras e eventos, a tradição passa gerações e atrai cada vez mais turistas. Impacto na economia é uma consequência natural.
Confraria Gastronómica da Sardinha  é uma das mais jovens, tendo sido formalizada em 2021 pelo presidente da câmara de Portimão e o mestre Júlio Ferreira.
Confraria Gastronómica da Sardinha é uma das mais jovens, tendo sido formalizada em 2021 pelo presidente da câmara de Portimão e o mestre Júlio Ferreira.
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Eram precisamente 11.37, do dia 13 de janeiro de 2021, quando nasceu oficialmente a Confraria Gastronómica da Sardinha de Portimão, uma das mais jovens em Portugal. Mas esta foi apenas a data do registo oficial, porque o projeto já tinha visto a luz do dia uns meses antes. “À mesa, claro!”, conta Júlio Ferreira, Mestre da Pesca, o cargo que nesta confraria significa presidir à Direção. No fundo, explica, “é quem governa a traineira, tendo a seu cargo a determinação e mando das fainas de pesca”. Analogias com a atividade que trouxe, desde há mais de uma centena de anos, a sardinha ao local onde já existiu um dos maiores polos da indústria conserveira nacional. “A sardinha tem um importante papel cultural e económico em Portimão (e não só), e tem de ser gerida como um tesouro nacional”, reforça.


Mas este retorno ao passado é comum a todas as confrarias que na sua estrutura estatutária integram elementos simbólicos que remontam a outros tempos e, em muitos casos, até à época medieval, como as funções administrativas, e os diversos órgãos sociais eletivos. Por exemplo, na Confraria Gastronómica do Alentejo, que completa 30 anos de atividade em 2024, estes órgãos são designados por Cabido Geral (que conta com a presença do Grão-Mestre, coadjuvado por dois secretários denominados de Escrivães), Provedoria (representada por cinco elementos: um Provedor, um Chanceler, um Contador-Mor e dois Almotacés), e a Mesa de Averiguações (composta por três elementos: Averiguador-Mor e dois Almoxarifes, títulos atribuídos ao presidente e respetivos vogais da mesa). “O nosso objetivo é defender e divulgar a autenticidade e tradição da gastronomia alentejana sem, no entanto, reprimir a sua evolução natural”, revela José Casas-Novas, provedor desta confraria, sublinhando a importância de fazer uma ligação ao passado e às tradições, mas sempre com os olhos postos no futuro.

Preservar a tradição e garantir a inovação
Mas, o que são afinal confrarias e que importância têm para a economia e para a sociedade? As confrarias são organizações que reúnem pessoas com interesses comuns, com o objetivo de preservar ou difundir conhecimento sobre um determinado assunto. As primeiras surgiram na Idade Média, muito ligadas à religião, mas, no século XX foram criadas quase todas as que existem atualmente, muito focadas na gastronomia, no vinho e na cultura das diferentes regiões do país. 

No entanto, mais do que guardiãs das tradições e da cultura enogastronómica, as confrarias têm um papel potenciador da economia nacional, nomeadamente do turismo e da notoriedade do que pretendem preservar. “Hoje mais do que nunca os produtos vendem-se pela história, momento e experiência que trazem”, diz Isabel Marrana. Para a diretora executiva da Associação de Empresas de Vinho do Porto (AEVP), “o elemento diferenciador que a Confraria do Vinho do Porto traz é um ativo importante nas vendas efetuadas”.

Uma opinião em linha com a de Júlio Ferreira que, no caso da Confraria da Sardinha de Portimão defende: “Através da valorização dos produtos da pesca e da atividade pesqueira sustentável conseguimos melhorar a competitividade das empresas do setor e do país”. Em paralelo, o Mestre de Pesca destaca a importância da promoção do turismo em Portimão, “através da criação de sinergias entre setores produtivos e da diversificação”. Ou seja, na perspetiva do responsável, ainda não existe uma ligação direta entre o papel e a atividade da confraria e um aumento nas vendas e exportação da sardinha sob as suas diversas formas, mas “está no nosso pensamento e será um objetivo realista”. 

Já para José Casas-Novas, o trabalho da Confraria Gastronómica do Alentejo tem sido “um catalisador económico para a perceção da gastronomia alentejana enquanto elemento identitário e diferenciador desta região transtagana”. Ao longo de três décadas, o grupo que conta com 265 confrades no seu corpo social, incentivou a investigação do património gastronómico alentejano nos seus múltiplos aspetos, tais como o receituário, arte e técnica da cozinha tradicional, produtos utilizados, relação com a arte popular gastronómica, pesquisa das antigas casas de comida, cozinheiras e cozinheiros, evolução das iguarias, “e todos os outros que permitam fazer a reconstituição histórica da cozinha dos nossos antepassados e afirmar a sua razão de ser nos dias de hoje”.

A materialização deste percurso conta com um conjunto de iniciativas regulares, mas também com livros temáticos (Doçaria Conventual, Receituário de Borrego, Diagnóstico da Fileira do Pão, Comeres Raianos - Histórias e Estórias da Raia Alentejana são alguns exemplos), cadernos gastronómicos (Tapas e Petiscos, Receitas do Mar, Comidas de Azeite) e, como sublinha José Casas-Novas, “a obra mais relevante é indubitavelmente a Carta Gastronómica do Alentejo, uma matriz conceptual de inteligibilidade do património gastronómico alentejano, enquanto instrumento de compilação e gestão dos saberes ancestrais”.

Reis, rainhas e chefes de Estado como embaixadores
A notoriedade, e o consequente aumento da procura pelo Vinho do Porto, deve-se muito ao trabalho dos embaixadores da Confraria do Vinho do Porto, ao longo de 42 anos. Atualmente, como explica Isabel Marrana, são mais de 50 os confrades com cargos de Chefes de Estado e Altezas Reais - aliás, a falecida Rainha Isabel II foi sempre uma grande apreciadora deste néctar do Douro. “O impacto destes confrades é enorme, pois representam o mais alto envolvimento dos países nossos consumidores ao nosso produto e às nossas tradições”, diz a diretora executiva da AEVP. Mas, além destes embaixadores, a Confraria do Vinho do Porto conta com milhares de confrades espalhados por 157 países, o que, reforça a responsável, “espelha bem a importância da confraria na promoção e divulgação daquele que é o produto português mais difundido no mundo”.

Oriundo dos socalcos da mais antiga região demarcada do mundo, o Vinho do Porto é o principal vinho português de exportação, pelo que vem de longe a necessidade de instituir embaixadores e divulgadores do produto a nível internacional. “O enoturismo é hoje igualmente uma ferramenta muito importante nas vendas e na promoção dos produtos”, salienta Isabel Marrana que destaca o papel predominante que Portugal conquistou nas vendas de Vinho do Porto e que “foi claramente atribuído pelo impacto do turismo no nosso país”.

Defender a sardinha e o ambiente 
Mais do que o tradicional trabalho de uma confraria - preservar, divulgar, promover -, a jovem Confraria da Sardinha de Portimão tem igualmente como meta “organizar todo o tipo de ações em defesa do ambiente, em geral, e da sardinha em particular”, revela Júlio Ferreira. Para fazê-lo, a confraria estabeleceu protocolos com o Museu de Portimão, a Docapesca, e está em conversações para fazer o mesmo com a Universidade do Algarve. “Serão parceiros estratégicos para o futuro nos projetos que temos em mente”, acrescenta o Mestre da Pesca. Entre eles está o livro, que será publicado ainda este ano, com o objetivo de sensibilizar para a sardinha e para a arte da pesca sustentável, onde poderão ser encontradas receitas à base deste peixe, e uma parte dedicada ao concelho de Portimão, “mais concretamente à cidade que em 2024 celebra 100 anos, aos principais pontos de interesse, para promover o turismo”, reforça o responsável. Este livro será distribuído gratuitamente a todas as entidades e confrarias portuguesas e estrangeiras que visitem Portimão. “Esta é uma forma de homenagear todos os pescadores, homens e mulheres que em tempos muito difíceis lutaram e trabalharam na indústria das conservas, que atingiu no Algarve o seu auge nos anos 30”.

Carne, peixe, enchidos, fruta, legumes ou vinho representam um setor gastronómico nacional que é “verdadeiramente estratégico”, como sublinham os responsáveis das confrarias que falaram ao DN/Dinheiro Vivo. Estratégico pela sua importância cultural e de preservação das raízes identitárias do país, mas também por tudo o que movimenta em seu redor: emprego, consumo, exportações, turismo. Por isso, mais do que conseguir quantificar o real impacto económico das confrarias no Produto Interno Bruto (PIB) nacional, é essencial perceber o seu papel de catalisador porque, tal como uma das mais jovens confrarias que nasceu à mesa, é também entre repastos e convívios que as tradições passam entre gerações e que o conhecimento é preservado. É também entre petiscos e vinho que quem visita o país se transforma em mais um dos milhares de embaixadores que despertam a vontade de viajar noutros tantos por esse mundo fora. geral@dinheirovivo.pt

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