Contas do 1º trimestre refletem-se pouco ou nada nos brilharetes orçamentais anuais

À exceção do primeiro ano da pandemia (2020), conseguiu-se entregar sempre um saldo final mais alto (em contas nacionais) do que o previsto inicialmente, tendo-se inclusive obtido excedentes por duas vezes (em 2019 e 2023) ou ficado muito perto do equilíbrio orçamental (em 2018 e 2022).
Joaquim Miranda Sarmento (à direita). Fotografia: PAULO SPRANGER / Global Imagens
Joaquim Miranda Sarmento (à direita). Fotografia: PAULO SPRANGER / Global ImagensPAULO SPRANGER / Global Imagens
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Desde o pós-troika (desde 2015) que as contas públicas portuguesas têm registado saldos no primeiro trimestre (em contabilidade de caixa, a da execução orçamental do Ministério das Finanças) que pouco ou nada têm a ver com o resultado final anual e sem que isso tenha comprometido as metas em contas nacionais (a lógica dos compromissos, que serve para calcular o saldo orçamental que é relevante para Bruxelas e as agências de rating).

À exceção do primeiro ano da pandemia (2020), o governo conseguiu entregar sempre um saldo final mais elevado (défice mais baixo ou excedente, em contas nacionais) do que o previsto inicialmente, tendo inclusive obtido excedente por duas vezes (em 2019 e 2023) ou ficado muito perto do equilíbrio orçamental (em 2018 e 2022), apesar do comportamento sazonal e oscilante que costuma afetar o primeiro trimestre (em contabilidade de caixa, que reflete as entradas e saídas efetivas de verbas do erário público).

Sarmento acusa

O primeiro grande choque entre o atual ministro das Finanças, Joaquim Miranda Sarmento (PSD), e o seu antecessor, Fernando Medina (PS), aconteceu ontem, quinta-feira, 2 de maio de 2024.

Miranda Sarmento foi à conferência de imprensa do Conselho de Ministros explicar que “a situação orçamental é bastante pior do que o anterior Governo tinha anunciado”.

“Em janeiro, havia um excedente de 1,2 mil milhões de euros, que baixou para 800 milhões em fevereiro. Agora, atinge-se um défice de quase 300 milhões de euros e se a estes somarmos o aumento das dívidas a fornecedores, também de 300 milhões de euros entre janeiro e março, então verificamos que temos um défice de quase 600 milhões”, disse o governante social-democrata, referindo-se ao apuramento feito pela Direção-Geral do Orçamento (DGO) na última execução orçamental divulgada esta semana e relativa ao período de janeiro a março deste ano.

“Até 31 de março, o anterior Governo comprometeu parte substancial das reservas do Ministério das Finanças como a dotação provisional, com 500 milhões de euros, mas que já só tem 260 milhões de euros [disponíveis]", acusou Sarmento.

E disse mais: "O anterior Governo aprovou igualmente despesas excecionais no primeiro trimestre de 1.080 milhões de euros, 950 milhões dos quais já depois das eleições de 10 de março”. Acrescentou ainda que estão a fazer “um levantamento exaustivo” das "108 resoluções aprovadas em Conselho de Ministros após a demissão de António Costa", a 7 de novembro do ano passado.

Dessas foram detetadas "três despesas de montante significativo sem cabimento orçamental", ou seja, que não têm receita prevista equivalente para as poder financiar: "100 milhões de euros de apoio aos agricultores para combate à seca no Algarve e Alentejo; 127 milhões de euros para a compra de vacinas contra a covid-19; e 200 milhões de euros para a recuperação do Parque Escolar", elencou Miranda Sarmento.

Medina responde

Medina reagiu bastante mal a estas acusações do seu sucessor. Rejeitou tudo. Ao início da tarde, no Parlamento, disse aos jornalistas que as declarações do atual ministro das Finanças são "lamentáveis e preocupantes" e "revelam uma de duas coisas: ou profunda impreparação e inaptidão técnica, ou falsidade".

E insistiu nesta última: "falsidade porque tenta comparar e usar os dados em contabilidade pública para daí aferir que o país tem um problema de natureza orçamental", algo que "o país não tem".

Segundo Fernando Medina, “os valores em contabilidade pública são muito fáceis de explicar".

Primeiro, disse, há o crescimento da receita fiscal que durante o primeiro trimestre de 2024 é menor face ao período homólogo de 2023 porque as retenções na fonte em sede de IRS estão a ser menores.

Em segundo lugar, temos "o crescimento da despesa com pensões até março, que está a ser maior este ano do que no ano passado, porque em 2023 “o adicional das pensões foi pago no segundo semestre e não no primeiro”, o que significa no segundo semestre esse efeito não ocorrerá. Segundo Medina isto é a prova de que a despesa cabe no que está previsto no Orçamento do Estado deste ano.

Em terceiro lugar, o ex-governante socialista assinalou o impacto de um conjunto de despesas extraordinárias, como as do défice tarifário, dos processos judiciais do Estado ou do apoio de 100 milhões de euros aos agricultores devido à seca.

“Por que razão ficariam os nossos agricultores ficar a aguardar que houvesse a mudança de Governo para receberem as ajudas que tanto necessitam tendo o Estado disponibilidade para fazer esses pagamentos”, questionou.

De acordo com Medina, isto não vai significar mais despesa adicional pois tratou-se somente de uma mudança no calendário desses pagamentos já previstos no orçamento deste ano.

Primeiro trimestre diz pouco do ano orçamental

Seja como for, segundo um levantamento feito pelo Dinheiro Vivo (DV), percebe-se que este tipo de saltos nas contas do primeiro trimestre é algo normal e reiterado desde que a execução orçamental deixou de ter de assumir políticas de austeridade, como no tempo da troika (até 2014).

Como referido, à exceção do primeiro ano da pandemia, em que Portugal e todos os outros países da Europa e do mundo) tiveram de abrir os cordões à bolsa para financiar vacinas, subsidiar cidadãos e empresas por causa dos confinamentos forçados, etc., que os primeiros três meses do ano não refletem nada bem o que vai ser o ano como um todo em termos de saldo orçamental final. Muito menos em contas nacionais.

E que, de facto, o saldo do primeiro trimestre em contas públicas tem pouco ou nada a ver com o saldo final anual em contas nacionais.

No ano passado, o ano começou com um dos maiores excedentes trimestrais de sempre, mas por causa de uma operação extraordinária (a transferência do fundo de pensões da CGD para a CGA, que é Estado).

Esta medida não tem impacto nas contas enviadas em Bruxelas. Mesmo sem a referida receita extra (avaliada em mais 3 mil milhões de euros), o governo conseguiu chegar a um excedente de 1,2% do PIB, o maior saldo público da História da Democracia em Portugal, como acenou tantas vezes o governo socialista de Costa e Medina.

Em 2022, o primeiro trimestre foi altamente excedentário (751 milhões de euros de excedente, empolado já pelo início da crise inflacionista), tendo terminado o ano quase em equilíbrio (défice de 0,3%).

Em 2021, ainda na ressaca dos piores momentos da pandemia, a DGO anunciou um défice trimestral enorme, de 2,4 mil milhões de euros, ou 5% do PIB), mas o governo haveria de terminar o ano abaixo dos 3% (2,9%, nas contas apuradas pelo INE, as tais que valem para Bruxelas, para a Comissão Europeia e o Pacto de Estabilidade).

Em 2018, o défice de caixa começa o ano nos 400 milhões de euros (0,8% do PIB), mas o país terminaria com um défice global anual quase no equilíbrio, de 0,3% do PIB, por exemplo.

Ainda é demasiado cedo para tirar conclusões

Vânia Duarte, economista do departamento de estudos do BPI (BPI Research), também acha que "é cedo demais" para tirar ilações sobre o que vai ser o ano de 2024 como um todo.

"Ainda é cedo para tirar conclusões mais claras sobre a execução orçamental em 2024".

Segundo a analista, "o início de ano traz sempre maior complexidade na comparação com o ano anterior, perante os diferentes perfis de pagamento de despesa e/ou recebimento de receita".

Em cima disto, "junta-se a ausência ainda de clareza quanto às principais medidas de política que o novo Governo irá implementar ou que se virá obrigar a executar".

Há ainda outras incertezas e vazios dos quais o ministro não falou, mas que podem ser importantes obstáculos à execução orçamental ou dificultar o alcance da meta de excedente orçamental (0,3% do PIB no cenário de Sarmento, 0,7% no cenário de Medina).

"Neste contexto, importa ter presente que a provável desaceleração da atividade económica (em Portugal e nos restantes parceiros europeus) e da inflação em 2024, juntamente com outros fatores de pressão (como a manutenção dos custos de financiamento em níveis ainda elevados) são riscos que continuam a ensombrar as finanças públicas", avisa a economista.

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