Crescimento do turismo atrai mais lojas de 'souvenirs' mas o negócio vai mal

COMÉRCIO. A proliferação destes espaços, abertos maioritariamente por imigrantes do Bangladesh e da Índia, mereceu críticas do presidente da Câmara do Porto, mas também de lojistas e até de turistas. O aumento da concorrência está a fazer cair as vendas, admitem.
Lojas de 'souvenirs' multiplicam-se pelas principais artérias comerciais da cidade, como a zona dos Clérigos
Lojas de 'souvenirs' multiplicam-se pelas principais artérias comerciais da cidade, como a zona dos ClérigosAmin Chaar
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Foi no pós-pandemia que se deu o grande boom das lojas de souvenirs no centro histórico do Porto. Para quem aqui habita, já há muito que a proliferação destes espaços comerciais constituía fonte de surpresa, na medida em que, a cada meia dúzia de metros, se encontra nova loja, exatamente igual, os mesmos produtos, a mesma disposição, diminuindo drasticamente a diversidade da oferta. O presidente da autarquia, Rui Moreira, aproveitou o ciclo de conferências ‘Estratégia Turismo 2035: construir o turismo do futuro’ para pedir ao Governo alterações ao licenciamento zero no sentido de dar aos municípios capacidade de regular a abertura destes espaços. E os lojistas o que pensam? Uma ronda pelas zonas turísticas da cidade prova que o número de lojas de souvenirs é crescente, o que gera anti-corpos nos comerciantes vizinhos, que não gostam “destas casas que vendem tudo e mais alguma coisa e que descaracterizam a cidade”. Os próprios lojistas dos souvenirs ja começam a queixar-se do aumento da concorrência, garantindo que está a estragar o negócio para todos.

Vamos a números. Diz a câmara que a Polícia Municipal do Porto está a atualizar o levantamento sobre estas lojas, mas que os dados oficiais existentes, referentes a 2023, indicam haver 181 lojas em 47 artérias do centro da cidade. Um levantamento que, diz Rui Moreira, foi feito a pedido do então ministro da Administração Interna, que terá manifestado preocupação pela “apropriação de locais premium na cidade”, com rendas “não compagináveis com o tipo de produtos que vendem”. Já a preocupação do autarca é com a “paisagem da cidade” e com as reclamações dos portuenses quanto à adulteração desta paisagem.

José Rocha, comerciante de vinhos há mais de 40 anos, diz que a cidade está “toda estragada” por que há “turismo a mais”. Ou melhor, “falta turismo de qualidade, é só turista de pé-descalço”. O empresário tem uma garrafeira nos Clérigos, “escondida” no meio das lojas de souvenirs. “Há um excesso destas casas que vendem de tudo e mais alguma coisa, que descaracteriza a cidade. Até parece mal”, argumenta. Foi ele próprio, diz, “uma das vítimas” da nova lei das rendas, que o pos fora do estabelecimento comercial onde esteve anos a fio e que agora está ocupado por uma loja de souvenirs. “São quatro mil euros de renda, como é que nós portugueses podemos concorrer com isso? Não conseguimos”, lamenta. 

Mais abaixo, Fátima tem uma retrosaria há 40 anos, e reconhece que a cidade sofreu uma transformação muito acentuada. “Tenho muito menos clientes portugueses hoje. Se não fossem os turistas, isto já estava fechado. Os portugueses queixam-se que esta rua só tem lojas de souvenirs, mas estão lá todos a comprar. E quem as arrendou também são portugueses, ninguém se pode queixar”, argumenta. E não esquece que, há 40 anos, “o Porto estava morto”, hoje, “é uma cidade cheia de vida”.

Já na Rua de Santa Catarina, a proliferação de lojas de souvenirs é também uma realidade. Hassam, de 38 anos, é um dos 4500 bengaleses que vivem no Porto. Chegou há cinco anos e por cá ficou. Trouxe a mulher e a filha, que anda já na escola primária “e já fala fluentemente português, diz o pai com orgulho, e entretanto já cá nasceu o segundo filho. No Bangladesh, Hassam tinha uma loja de materiais de construção. Cá decidiu-se pelos souvenirs. “Num país com tanto turismo, era isso ou um restaurante. Mas aí temos o problema de sermos muçulmanos, um restaurante que não venda álcool não funciona bem”, explica.

Hoje admite que há lojas destas a mais. “Também é um problema para nós. O turismo está a crescer, mas todos os dias abrem mais lojas. E o negócio não está nada bom. Está mau para todos”, diz, argumentado que o aumento das rendas torna tudo muito difícil. “Não acredito que haja atividades ilegais. É muito importante que percebam que somos uma comunidade muito trabalhadora. Temos responsabilidade para com as nossas famílias, a que para cá trouxemos e a que ficou lá”, refere, sublinhando que trabalha 12 ou 13 horas por dia, seis dias por semana. 

Já Kamal (nome fictício) está em Portugal há sete anos, vindo da Índia, com a intenção de abrir o seu próprio negócio. Para já é funcionário numa destas lojas, numa das artérias principais da cidade, mas não quer identificar-se porque fala ao Diário de Notícias sem autorização do patrão. Fala num país diferente antes e depois da pandemia de covid-19. 

“Portugal é um país calmo e que recebia muito bem quem para cá vinha, mas depois da vodi há muito racismo, não gostam de imigrantes. Não percebo porquê, se não querem imigrantes, porque têm uma política de portas abertas?”, questiona. O negócio “corre bem”, garante, mas “mau era se não corria” estando a loja situada numa das principais artérias comerciais da cidade. E só pede que o deixem trabalhar em paz e sossego. “Se os portugueses nos quiserem dar trabalho, nós vamos. Só queremos ganhar a vida sem criar problemas”, assegura.

E os turistas o que pensam do assunto? Noah e Melanie são dois londrinos de visita ao Porto pela primeira vez. Enquanto Melanie espreita uns brincos numa das lojas de souvenirs em frente à Capela das Almas, em pleno coração do turismo portuense, Noah aproveita para acender um cigarro. Questionado sobre a multiplicação destas lojas admite que já tinha dado por isso. “A cidade é linda, com muita história e arquitetura, gostava de ver isso refletido no comércio, com coisas mais autênticas”.

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Alam Kazol
“Cabe às autoridades investigar e atuar se houver negócios paralelos”

ENTREVISTA. O presidente da Associação Comunidade do Bangladesh do Porto admite que em algumas zonas há lojas em excesso e que todos sofrem com a perda de vendas.

O presidente da Câmara Municipal do Porto diz não ter “dúvida nenhuma” que muitas lojas de souvenirs no Porto sirvam para “negócios paralelos”, considerando que não é a vender ímanes a 50 cêntimos ou a um euros que conseguem pagar as rendas das lojas em locais nobres da cidade. Como vê essa acusação?
Ninguém vende ímanes a 50 cêntimos e as lojas de souvenirs não vendem só ímanes. Vendem muitas peças a 15 e a 20 euros. E os cidadãos do Bangladesh que cá estão, muitos deles com lojas, trabalham muitas horas, muitas vezes 15 horas por dia, para poderem suportar essas rendas. 

É uma acusação injusta?
Isso cabe às autoridades investigar. Estou há 32 anos em Portugal, sou membro da Assembleia de Freguesia do Bonfim, só posso dizer que, enquanto associação, estamos disponíveis para colaborar. As autoridades devem investigar e, se houver negócios paralelos, devem atuar. 

Sente que os imigrantes são bem-vindos?
Nos últimos dois ou três anos sente-se algum racismo e xenofobia. Antigamente não havia nada disso. Mas sabemos que há quem cá chegue e faça asneiras, cabe às autoridades controlar. Portugal precisa de imigrantes tem um problema demográfico, tem falta de mão de obra, mas a imigração tem que ser controlada, com regras.

Também vende souvenirs na sua loja. Porquê?
Nos últimos 10 anos, os clientes portugueses foram desaparecendo e hoje, a maior parte dos compradores são estrangeiros. Eu dedicava-me à revenda de brinquedos, vestuário, colchas, etc, mas perdemos 80% dos clientes. Hoje ninguém cá vem comprar um vestido. A Baixa foi invadida por turistas e, há coisa de três anos, achei que devia transformar parte da loja para vender artigos que os estrangeiros possam querer. Há cada vez menos portugueses na cidade.

E não acha que há lojas de souvenirs a mais?
Em algumas zonas, sim. Mas também não podemos impedir. Muitas dessas lojas estavam fechadas e também ninguém obriga o senhorio a aluga-las. Querem rentabilizar o espaço. 

E isso não cria problemas ao negócio?
Cria e hoje já se sente que há muita concorrência e que há muito menos negócio do que o ano passado. O que é mau para todos. Mas não sei como é que isso se resolve. Há muita gente que já começou a desistir.

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