As crises que têm assolado a economia portuguesa nas últimas décadas têm um efeito inibidor sobre a fecundidade e a natalidade. A pandemia de covid-19 parece não ser exceção, mostram dados e confirmam alguns estudos novos revelados pelo Instituto Nacional de Estatística (INE).
Sempre que há uma crise no horizonte e as más notícias começam a acumular-se, o número de bebés começa a cair uns meses ou trimestres antes do pior momento do ciclo económico (é assim um indicador avançado), resume um estudo do economista Jorge Bravo, ontem divulgado pelo INE, no âmbito do Inquérito à Fecundidade anual relativo a 2019.
Este mesmo estudo também refere que existe uma "causalidade instantânea" significativa, isto, é a fecundidade e os bebés que nascem aumentam quando as pessoas são contemporâneas de uma economia favorável. Inversamente, a fecundidade esmorece quando os tempos económicos são sombrios.
O INE explica que este inquérito ainda não capta o que aconteceu durante a pandemia pois "decorreu entre setembro de 2019 e fevereiro de 2020".
No entanto, alguns especialistas não descartam que tenham existido impactos importantes na fecundidade por causa da covid e da crise histórica que a acompanha.
Como referido, a pandemia de covid-19 não deverá ser exceção no efeito depressor sobre o número de bebés nascidos.
Assim é por causa da crise sanitária, económica e social que se abateu sobre Portugal e o mundo e pela incerteza que ainda hoje gera, argumenta um outro trabalho, desta feita sobre a decisão de ter um segundo filho com uma pandemia à porta ou a decorrer.
O artigo, também com a chancela do INE, é assinado Rita Brazão Freitas, Andreia Maciel e Maria Filomena Mendes.
"Aos fatores sociais e económicos, acresce a possibilidade de os portugueses poderem vir a limitar o número de filhos como forma de proporcionar a estes menos restrições e mais oportunidades como fator determinante para não ter (ainda) transitado para o segundo filho", começam por referir as três autoras.
"Portanto, numa situação de maior constrangimento e incerteza económica, os portugueses poderão não conseguir planear projetos de futuro com um maior nível de segurança e, consequentemente, não ter o segundo filho" que um dia idealizaram.
E, rematam as três investigadoras, "importa mencionar que, em algumas situações, a atual pandemia (covid-19) constitui mais uma agravante nesse cenário de incertezas".
Choque da pandemia na natalidade só se começa a sentir agora
De acordo um levantamento feito pelo Dinheiro Vivo, o número de bebés parece ter quebrado bastante neste arranque de ano, reflexo do choque de realidade e económico que marcou severamente os meses de março, abril e maio do ano passado.
Isto é, nove meses depois, os números de nascimentos estão à vista. Em média há menos 1000 bebés por mês neste arranque de 2021 face à média de todo o ano passado (cerca de 7000), mostram esses dados. É uma quebra abrupta, superior a 14%.
Recorde-se que a pandemia e o primeiro grande confinamento foram anunciados em março do ano passado pelo que eventuais decisões em não ter filhos por causa desta crise tendem a manifestar-se em pleno (em número de nascimentos) a partir de janeiro de 2021 inclusive em diante. Ou seja, ao fim de nove meses, o tempo normal de gestação de um ser humano.
O Inquérito à Fecundidade do INE é composto de cinco estudos de investigadores e técnicos da casa.
Três grandes crises ajudaram a deprimir a fecundidade
Como referido, o economista Jorge Bravo conseguiu estabelecer para o caso português algo novo: ele prova que existe de facto uma relação entre crises e níveis de natalidade e fecundidade em Portugal. Quando estas se perfilam no horizonte, os portugueses travam projetos para terem filhos.
Nesta análise retrospetiva, que recua até ao início deste milénio, Portugal foi profundamente afetado por três grandes crises. Pela crise de 2002/2003, pela crise financeira (que começou em 2008 e arrastou-se até 2009) e pela mais destruidora de todas, a crise da dívida que rebentou no final de 2010, levando o País à bancarrota e a pedir um resgate (que veio acompanhado de um programa de austeridade). Esta última crise prolongou-se quase até 2013. A troika só sairia do país em meados de 2014.
Segundo Jorge Bravo, "os resultados empíricos do estudo" confirmam que existe "uma relação de causalidade [...] entre a fecundidade e a taxa de crescimento do produto interno bruto (PIB) trimestral e sugerem que as decisões de fecundidade são um indicador avançado do ciclo económico, antecipando em três trimestres os pontos de inflexão na atividade económica".
Além de antecipar ligeiramente, o nível de fecundidade acaba por acompanhar a onda da criação de riqueza, argumenta o economista.
Se uma crise se aproxima, as pessoas começam a ter menos bebés poucos trimestres antes do pior momento do ciclo (o tal ponto de inversão ou inflexão). Se a retoma começa a esboçar-se no horizonte, as pessoas tendem a fecundar mais, uns tempos antes.
Além dos nados-vivos, o investigador usou como indicadores de fecundidade os fetos mortos e as interrupções voluntárias da gravidez (IVG).
Este estudo concluiu para o caso português algo muito semelhante ao que alguns economistas descobriram recentemente no caso dos Estados Unidos. Nos EUA, "a taxa de crescimento das conceções começa a diminuir vários trimestres antes do início das recessões económicas, sugerindo que o comportamento da fecundidade é prospetivo e sensível a mudanças nas expectativas de curto prazo sobre a evolução da economia", refere Jorge Bravo.
Cinco artigos científicos que dissecam o problema
Como referido, o novo Inquérito à Fecundidade contém cinco estudos realizados por investigadores e técnicos do INE:
- "Ter ou não ter filhos: razões da decisão", de Maria João Valente Rosa e Isabel Tiago de Oliveira;
- "Intenções de fecundidade nos núcleos parentais jovens: uma análise comparativa dos núcleos monoparentais, de casais 'simples' e recompostos", de Vanessa Cunha, Susana Atalaia e Sofia Marinho;
- "Segundo filho: uma transição incerta", de Rita Brazão Freitas, Andreia Maciel e Maria Filomena Mendes;
- "Infecundidade permanente e voluntária: as pessoas sem filhos e sem intenção de os vir a ter", de Susana Clemente, Rita Lages e Joana Malta;
- "A fecundidade como indicador avançado do ciclo económico em Portugal", de Jorge M. Bravo.