Da roleta asiática

Sempre que abro um menu, abro uma Bíblia e medito: "Se somos o que comemos, o que é que eu quero ser hoje?"
Publicado a

Se viajar já era perigoso, "comer" países tornou-se uma atividade suicida. E já nem falo dos temperos bacterianos, dos sais virais e das especiarias protozoárias.

Falo do velho arroz branco asiático, da banana transgénica e da água engarrafada por osmose invertida. Aproximo-me, a garfadas largas, de um amargo final!

Agora que descobrimos que o mistério da morte se deve à alimentação, percebemos que cada salada russa é uma Roleta Russa. E não há nação que não tenha as suas armas de digestão maciça.

Eu cá gosto de comer. Gosto de comer bem e gosto de comer mal e gosto de comer muito. Cresci numa época em que o homem se media aos pratos. E eu, para não ficar atrás... ia à frente. Aprendi a comer muito e muito rápido e não só não deixava nada no prato, como ainda repetia. O pesadelo de qualquer nutricionista e o sonho de qualquer avô!

Mas será que na era do cross-vegan-fitness-yoga-orgânico, há lugar para uma miúda com um sistema digestivo minhoto?

A verdade é que treinei-me para gostar de tudo. Com e sem glúten, com e sem açúcar, com e sem carbonos, com e sem veneno. Há pouca coisa que não me deixe boquiaberta. E depois de tanta comida, o único esforço que faço é mental. Aí sim, sou musculada.

Sendo viajante não posso dar-me ao luxo de andar a salada de caju e alpista, regada com vinagre balsâmico de acerola e sementinhas de acácia japonesa. Se era para comer gelo e rúcula então não valia a pena ter saído do meu quarteirão.

Não me interpretem mal: eu adorava ter alimentação de um monge do Butão. Gostava de viver até aos 130 com o corpo da Naomi Campbell e a destreza mental do Kasparov. Mas a verdade é que gosto muito mais de comer.

Gosto mais de feijoada do que ficar bem de biquíni. Gosto mais de cerveja que de abdominais de aço, gosto mais de Pad Thai que de pressão arterial certinha. Gosto mais de Nutella que de pele acetinada de bebé. Gosto mais de fast food que de maratonas. Gosto mais de molhos do que não ter celulite. Gosto mais de leite que de não ter doenças terminais. Gosto mais de estar à mesa do que em qualquer outra peça de mobiliário. Gosto tanto de café que vivo em permanente insónia. E olhem que eu gosto bem de dormir.

Se em vez de contarmos calorias, contarmos alegrias, percebemos que cinco meses de viagem vezes três refeições por dia são 450 comezainas. São mais oportunidades de ter prazer que dias numa volta ao sol!

Sempre que abro um menu, abro uma Bíblia e medito: "Se somos o que comemos, o que é que eu quero ser hoje?"

Serei uma saladinha de Papaya Verde Tailandesa (sim é divina, sim leva açúcar), uma sopinha da Chamuça Birmanesa (com caldo de água de lavar pratos e temperos da Índia) ou um Amok Cambojano (cujo peixe em leite quente de coco e caril delicia, não vai esperar pela velhice para me deixar de rastos no WC mais próximo). E que tal um Banh Mi Vietnamita (versão carne de porquinho Babe tenrinho como o queijo que o envolve) ou um crocante Woton de camarão (com refugadinho mediterrâneo em cima de uma espécie de super batata frita). Será que prefiro ser um Sticky Rice do Laos (arroz peganhento que se come à mão e ao molho) ou uma Sopa de Mariscos e noodles das Ilhas do Pacífico (com sabor tão aportuguesado que me deixa saudades emigrantes)?

E, para rematar, que tal um cházinho do Myanmar (dois terços de chá colonial britânico para um terço de leite condensado cristão), ou um café vietnamita (que, vá-se lá saber porquê, sabe a chocolate)?

Ele há tanta maravilha gastronómica que, a ter que morrer, que seja de má digestão. Olhem que andar de carro mata mais e não vejo ninguém a desistir da condução.

Conclusão: Viver é arriscado...mas (ai) o que eu não dava agora por um bom salgado!

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt