Para assinalar o dia nacional da Contabilidade, começaria por reconhecer que o último ano foi extremamente atípico para quase todas, senão todas as classes profissionais dos diferentes setores económicos. No caso particular dos contabilistas, esse caráter específico tem-se refletido na enorme quantidade de tarefas adicionais que persistem em não diminuir, mesmo depois de termos superado, enquanto setor, uma lista infindável de novos desafios. Para reconhecer os contabilistas neste dia especial é então necessário identificar esses desafios e essas tarefas e situá-los na discussão do contributo inestimável que esta classe deu e continua a dar à nossa sociedade e aos seus agentes económicos e sociais.
Em retrospetiva, é hoje possível observar que, com o primeiro lockdown, houve pelo menos dois desafios enormes que as empresas de contabilidade tiveram desde logo de enfrentar:
1. A exigência abrupta de teletrabalho, onde se registaram fenómenos bastante relevantes. Desde logo nasceu a interrogação coletiva das diversas empresas de contabilidade sobre como se iria operacionalizar todo o trabalho a partir de casa e se o sistema informático com a rede instalada, servidores, VPN, firewalls, estaria em condições de manter a ligação remota entre os colaboradores. Com efeito, tomou-se então conhecimento de relatos de muitas empresas e de muitos contabilistas individuais que não tiveram sequer a capacidade de se adaptarem a esta nova exigência, pois trabalhavam com computadores fixos, principalmente na periferia das grandes cidades. Esses não tiveram infelizmente outra opção senão a de continuar a trabalhar presencialmente com os riscos inerentes de que todos estamos cientes. Os que conseguiram trabalhar a partir de casa, e que, portanto, dispunham de sistemas informáticos mais robustos e um hardware à medida das necessidades, tiveram, contudo, o desafio de pensar na forma de manter a confidencialidade da informação dos clientes dentro do contexto familiar. Não foi de todo fácil e houve certamente uma multiplicidade de soluções encontradas.
2. A exigência acrescida de monitorização das medidas do Governo (que para mim foi talvez "o desafio"). Esta exigência surgiu num período vincadamente marcado pela emanação política ou legal de conceitos contabilísticos e financeiros completamente novos e distintos, o que conduziu, entre muitas outras coisas que poderiam ser enunciadas, à repentina necessidade de adaptação das equipas às plataformas online que permitiam fazer a absolutamente crucial submissão de candidaturas de empresas ou individuais aos apoios do Estado e/ou a outras opções contempladas. Volvido cerca de um ano de profundas adaptações, podemos agora dizer que todas elas nos fizeram crescer enquanto profissionais da área.
Estes dois grandes desafios - o do teletrabalho e o da monitorização - mantêm-se hoje totalmente presentes e perdurarão pelo menos enquanto houver pandemia. Contudo, também podemos dizer que aprendemos a lidar com os mesmos: a incerteza tornou-se uma certeza e, por conseguinte e em certa medida, uma forma de previsibilidade; os contabilistas conseguiram efetivamente fazer a diferença e salvar empresas. Considero-a por isso uma classe profissional de feitos verdadeiramente heroicos no que diz respeito à preservação e ao florescimento do tecido empresarial português. Mas devo notar, infelizmente, que não se verificou um único apoio do Estado vocacionado para estes profissionais - o que a mim me choca particularmente e sei que muitos contabilistas partilham o mesmo sentimento.
Como várias outras, a classe dos contabilistas trabalhou dia e noite. Às suas funções naturais, somaram-se a da interpretação rigorosa de inúmeros Decretos-Lei, sem o apoio legal e a uma velocidade estonteante, pois estes eram infinitamente complexos, por vezes contraditórios e sujeitos a alterações quase diárias. Mas o contabilista sabia que não se salvariam tantas empresas sem essas novas competências. Nesse sentido, poderia dizer que a pandemia apenas veio tornar mais evidente a vocação natural para o contabilista ser algo mais dentro das empresas e organizações.
Na verdade, os contabilistas sempre foram um grande suporte para a tomada de decisões estratégicas das empresas e organizações. Mas se no passado já era importante ter as contas em dia, com a pandemia tornou-se ainda mais importante para os gestores ter contabilistas que ao mesmo tempo fossem capazes de fornecer informação atempadamente. Neste sentido, creio que inadvertidamente a pandemia serviu de rastilho para um processo transformacional que permitiu elevar a nossa profissão à fasquia que lhe faz jus - a de "braço direito" dos gestores -, contribuindo para o fim do mito de que este profissional é um mero guarda-livros.
A questão, então, já não é a de que os contabilistas não possam ser conselheiros rigorosos dos decisores, mas antes, como é que se torna possível compatibilizar essa sua função natural com a falta de tempo ou elevadíssimos volumes de trabalho acrescido. Deixo aqui a minha visão sobre essa matéria: as empresas de contabilidade, terão forçosamente de iniciar um processo de transformação digital ao nível da desmaterialização da documentação, garantindo assim, tanto o sigilo e a confidencialidade da documentação, por um lado, como a interação mais atempada entre as empresas e o contabilista, por outro. Com a automatização de processos e tarefas (que por defeito são sempre muito morosos quando são feitos manualmente), passa a haver mais tempo para a análise das contas enquanto mais-valia no processo de decisão estratégica.
O trabalho dos contabilistas falou por si. Neste último ano reforçámos a perceção do valor acrescentado aos negócios e às atividades económicas em geral e passámos a ser vistos, menos como um serviço e custo obrigatório e mais como um "investimento indispensável" para todos. Passámos como que de contabilistas a consultores.
Cofundadora e partner do grupo Your