Decisão de Bruxelas sobre Zona Franca vai roubar empresas e atratividade à Madeira

Um caos jurídico, é o que o fiscalista Nuno Cunha Barnabé antecipa para quando as empresas começaram a ser chamadas a devolver auxílios de Estado. "Não diria que a zona franca está condenada", mas vai haver perdas e dano sério à receita fiscal da região.
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Centenas de processos a entupir o Tribunal do Funchal, empresas insolventes e êxodo de muitas outras. As notificações ainda não começaram a chegar, mas é o que se espera em consequência do processo de recuperação de 833 milhões de euros junto de empresas acolhidas na Zona Franca da Madeira, que Bruxelas considerou terem beneficiado de ajudas ilegais de Estado.

Portugal está a contestar a decisão no Tribunal Geral da União Europeia, tal como algumas das firmas visadas, mas a confusão jurídica antecipa-se duradoura e os danos reputacionais para o país significativos. "Não diria que o regime da zona franca está condenado, mas vai haver perda efetiva de empresas e perda brutal de atratividade do regime, além do prejuízo para a receita fiscal da região", antecipa Nuno Cunha Barnabé, sócio da Abreu Advogados. E será um prejuízo significativo, considerando que o Centro Internacional de Negócios soma dois terços da receita de IRC e 12% de toda a receita fiscal regional.

Em causa está um entendimento da Comissão Europeia (CE) de que houve incumprimento das regras de concessão de benefícios fiscais, em 2007 e 2013, porque este devia limitar-se a empresas que tivessem atividade efetiva na ilha e com criação local dos postos de trabalho.

Conhecendo o tema a fundo, o fiscalista da Abreu Advogados defende que a posição de Bruxelas é tomada com base em requisitos que não fazem sentido. "Há aqui uma contradição estrutural de filosofia fiscal do que é o entendimento da CE - parece mais uma interpretação do que um esclarecimento do entendimento inicial, mesmo porque isto arrasta-se há anos e só agora foi tomada esta posição", depois de dadas as autorizações e publicada a legislação. Para Nuno cunha Barnabé, a parte industrial não está em causa, mas no que respeita ao regime de apoio a atividades internacionais, ter um entendimento de requisito de postos de trabalho e de efetivo exercício da atividade na Madeira é "completamente contraditório com a natureza de um regime que a CE conhecia e autorizou, que é assim desde os anos 90". A justificação do fiscalista prende-se com a atividade internacional de empresas sediadas na Madeira: se no shipping não faz sentido porque a atividade é prestada a bordo, no trading e serviços pelo menos parte do negócio é exercido fora da região. E muitos negócios nem precisam de recursos humanos. "Para fazer gestão de propriedade intelectual preciso de duas pessoas. Logo não tenho vantagem em ir para a Madeira porque não vou ter benefício fiscal nenhum, não acrescenta, antes é um custo adicional", exemplifica.

"O que vai acontecer é que essas empresas, sobretudo de trading, vão ter de olhar para a sua atividade e ver como conseguem cumprir requisito de emprego local. Se eu consigo fazer a minha atividade com seis postos de trabalho e faturar 50 milhões, a taxa de 5% vai aplicar-se a uma parte muito pequena desse resultado, logo deixa de ser atrativo estar na Madeira. Ou então - pode fazer sentido para uma ou outra empresa - vou contratar 20 pessoas residentes que não fazem nada só para aceder ao benefício. Nada disto faz sentido."

"As empresas que lá estão ou se mudaram para lá vão ser confrontadas com uma interpretação incompatível com o exercício da sua atividade. Uma holding não precisa de dezenas de pessoas, logo não vai beneficiar do regime, pelo que não terá razão para ficar."

O fiscalista defende que a determinação levanta ainda outras questões, nomeadamente como é que se compatibiliza um requisito de postos de trabalho com a liberdade de circulação de pessoas dentro da UE, sobretudo no âmbito dos atuais modelos de trabalho remoto, que têm vindo a ganhar espaço. "É uma contradição", diz. E que vai ter efeitos.

Para começar, naturalmente, boa parte das empresas vai contestar. "Serão centenas de processos no Tribunal do Funchal, com casos totalmente diferentes." O advogado antecipa ainda empresas em insolvência, outras que pagam e vão embora, um elevado volume de contencioso e uma imensa dificuldade em cobrar, já que "isto não é um imposto em dívida mas a recuperação de um auxílio de Estado". "Vai ser a maior confusão jurídica e vai prolongar-se por anos."

Para Nuno Cunha Barnabé, a par do imbróglio jurídico, há uma relevante questão reputacional, aquilo a que chama o "problema da tutela da confiança". "Durante todos estes anos houve inúmeras interpretações, informações vinculativas, despachos a defender determinada posição; agora a CE vem dizer algo totalmente distinto de tudo isso. Vem tardiamente interpretar o que devia ter dito à partida." E o tempo que se demorou a chegar à decisão implica que em vez de ter de se corrigir três ou quatro anos, se ponha em causa dez anos de atividade. No futuro, dificilmente alguém que queira instalar uma operação em Portugal irá escolher a Madeira, acredita o fiscalista, porque já não compensará. "O objetivo do auxílio, que pretende compensar a ultraperifericidade da região, perde efeito."

E quanto às que já lá estão e são agora chamadas a devolver os benefícios? "Temos um problema", diz. "Muitas destas empresas já nem estão cá - quando o regime mudou, muitas saíram da Madeira ou mesmo do país. E admito que muitas podem simplesmente ficar insolventes, porque não têm capacidade para pagar estes valores. Não têm património, porque nestes anos foram fazendo as suas distribuições pelos acionistas e não estou a vê-los a devolver esses valores exceto em casos excecionais em que se pretenda salvaguardar um aspeto reputacional."

O que leva a outro tema: as enormes dúvidas de forma dos advogados. "Nós temos cerca de 200 decisões de todas as áreas de auxílios de Estado que têm Portugal como destinatário nos últimos 15 anos, muito raros de natureza fiscal e nenhum caso como o nosso." É que a UE delegou no Estado-membro a identificação das empresas. "Há um valor global de auxílios, mas a Autoridade Tributária (AT) não faz ideia se a atividade e os postos foram exercidos ali. Há temas complexos como a regra de mínimos, que implica olhar e cruzar dados de toda a atividade, empresa a empresa. Por outro lado, isto não é uma dívida fiscal, o que está em causa não é uma correção fiscal em sentido estrito; a AT não está a notificar para pagar um imposto que devia ter sido pago, mas a repor o regime-regra de tributação e a revogar um benefício fiscal, por razões de reposição da concorrência. Ou seja, isto é tratado como tendo as empresas recebido uma ajuda do Estado que têm de repor."

O advogado lamenta não apenas a alteração de uma interpretação que vem pôr em causa toda a viabilidade do regime da Zona Franca da Madeira, mas o tempo que demorou a decisão. "Estamos a resolver tardiamente e com custos brutais e isso também se liga ao problema da competitividade fiscal do país."

Nuno Cunha Barnabé vinca que o problema fiscal português nem sequer são as taxas de imposto, mas a instabilidade das regras e os regimes específicos para determinadas atividades. "A falta de estabilidade é um problema: nós aprovamos a legislação, por vezes corrigimos nem um ano depois ou até antes de entrar em vigor, e não temos em tempo útil interpretações estáveis, o que faz que tenhamos inspeções com interpretações diferentes e cada vez mais restringidas. Ou seja, temos legislação que prevê benefícios mas no tempo há enorme incerteza quanto à sua interpretação pela AT." Para não falar nas mudanças trazidas a cada OE, pela diversidade de interpretações por distrito, etc. "As nossas leis são boas, há é alguma instabilidade nelas e imprevisibilidade na sua aplicação", resume.

Quanto à decisão de Bruxelas, os problemas ainda mal começaram.

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