
Existe uma proibição geral das práticas comerciais desleais, que são, inclusivamente, puníveis com coimas e cujo valor pode atingir cerca de45 mil eurosno caso das pessoas coletivas, a verdade é que estas continuam a ser uma realidade muito presente no nosso quotidiano, fruto do crescimento do mercado e das inovações em ambiente digital e tecnológico, que facilmente mascaram a prática desleal e, nalguns casos, banalizam-na.
Vivemos numa época de permanente mutação da forma como as práticas comerciais, incluindo as desleais, se vão reinventando.
A permanente mutação é, infelizmente, desacompanhada do lado do legislador, que frequentemente “corre atrás do prejuízo” nesta matéria. Por exemplo, no âmbito da transição verde (talvez das tendências de consumo mais atuais), à medida que assistimos ao crescimento e evolução dos meios de comunicação, nomeadamente nas redes sociais, tornou-se recorrente o recurso a alegações ambientais que, através da utilização de selos, logos e certificações green, têm a pretensão de influenciar a escolha de produtos feita pelo consumidor.Estes selos e certificações de produto são, na sua maior parte, de conteúdo “vazio” uma vez que, na prática, não correspondem a mais do que ao produto de sempre, alterado minimamente para parecer munido das características trendy da atualidade. Correndo atrás deste tema, foi publicada uma Proposta de Diretiva pela Comissão Europeia que tem como objetivo capacitar os consumidores na transição ecológica quanto a comportamentos que os induzam em erro no que respeita à sustentabilidade das suas escolhas.
Noutro contexto, ao nível da vulnerabilidade infantil, temos assistido a ferramentas que captam a atenção das crianças através de estímulos audiovisuais, explorando o seu desenvolvimento psicológico e cognitivo, tornando-as num público-alvo frágil e que facilmente cria o perfil perfeito de criança-consumidora e de futura compradora. Não é por acaso que, especialmente em épocas festivas, abundam as campanhas publicitárias que estimulam a fixação em certos produtos e, em relação a isto, o Código da Publicidade tem vindo a estabelecer regras que exigem especial cuidado na publicidade dirigida a menores, obrigando os comerciantes a considerar a vulnerabilidade psicológica e falta de maturidade das crianças, abstendo-se de explorar tais fragilidades. No entanto, com a memória da época festiva ainda presente, recordando várias campanhas dessa altura, percebemos que ainda existem falhas na aplicação da lei.
Continuando no panorama de comportamentos desleais por parte de comerciantes, o mercado tem assistido à propagação dos e-books, que se consubstanciam em bibliotecas de livros digitais que podem ser adquiridos pelos consumidores.
É certo que, sempre que compramos um produto, temos inerente a expectativa de obter a propriedade do mesmo, estando a ideia da compra intrinsecamente ligada a isso mesmo.Ora, não é isto que se verifica quando o consumidor adquire um e-book. Aliás, aquilo que se tem vindo a concluir é que, apesar de muitas vezes serem comprados ao mesmo preço que um livro em formato físico (de papel), os e-books acabam por consubstanciar uma mera licença de utilização, uma vez que o livro apenas pode ser lido nos dispositivos associados à sua conta pessoal – é um bem que não pode deixar a biblioteca digital do consumidor, não sendo possível vender ou emprestar o livro no seu formato digital.Assim, a maior parte dos consumidores, ao clicar no botão de “compra”, continua a achar que está a adquirir a propriedade do bem quando, na realidade, apenas está a adquirir uma autorização de utilização, afigurando-se tal como uma prática desleal.
Por último, e diretamente relacionado com a evolução das práticas comerciais desleais na tecnologia, o tema das lootboxesnos videojogos tem vindo a gerar alguma polémica. Uma lootbox representa um bem consumível virtualmente que é adquirido pelo jogador e que, alegadamente, distribui recompensas de caráter aleatório ao jogador, que inclusive já terá gerado suspeitas de ser uma forma disfarçada de jogo e aposta. Para além de estes bens gerarem verdadeiras economias paralelas (através da sua venda em mercados separados do jogo), criam no jogador a necessidade constante de adquirir novas lootboxes,o que faz com que seja defraudada a expectativa inicial de um consumidor que gasta um determinado valor num videojogo e não conta em gastar mais para poder continuar a jogar em determinado patamar. Estas acabam por ser práticas que exploram a vulnerabilidade dos jogadores, nomeadamente através da agressividade da publicidade utilizada, do seu deceptive design, da moeda virtual que mascara o custo real ao adquirir os bens virtuais, entre outros.
Com toda a pressão criada pela comunidade dos videojogos nos consumidores, a UE tem vindo a avançar medidas que tentam combater as práticas em apreço, afirmando que na venda de lootboxes devem ser cumpridos os deveres de informação aos consumidores, e reiterando que, caso as várias medidas não venham a surtir efeito, estas deverão vir a ser alvo de uma proibição geral.
Existem, claro, as clássicas respostas do legislador para combater estas práticas, na vertente do remédio, ou seja, na possibilidade do consumidor, confrontado com uma compra de um bem ou serviço que não corresponde ao anunciado ou que de alguma forma viola normas proibitivas de práticas comerciais desleais, como o direito ao arrependimento e o direito à garantia.
Infelizmente, a realidade é que o combate preventivo (em teoria, mais importante) está longe de ser eficaz, muitodevido a uma dificuldade generalizada do supervisor e do legislador em acompanhar tanto as novas formas de praticar o comércio, como a multiplicidade dos seus veículos, que entre o meio físico e o digital continuam a proliferar e em muitos meios, totalmente desconsiderando a regulamentação.
Tiago Leal, associado sénior de Comercial e Contratos da PRA – Raposo, Sà Miranda & Associados