Quando a China aderiu à Organização Mundial do Comércio em 2001 (com efeitos plenos e muito profundos na economia mundial a partir de 2005) aconteceram duas coisas.
Primeiro, a China fez do mundo um planeta barato e podia haver subidas de taxas de juro quando a economia aquecia demais. Nesta altura, a Europa não estava muito endividada.
Depois, numa segunda fase, a China cresceu por dentro e passou gradualmente de produtora barata a ávida compradora de bens e serviços caros. A inflação alta apareceu e, ato contínuo, muitos países europeus, empresas incluídas, deram conta que estavam numa armadilha, sobreendividados, sem grande margem para atuar contra a tempestade da estagflação (inflação muito alta combinada com crise e recessão).
Primeiro, a China inundou os mercados com produtos baratos a preços nunca vistos, os salários muito reduzidos e até miseráveis praticados no gigante económico viriam a arrasar indústrias nacionais tradicionais (veja-se o caso de Portugal) através da concorrência feroz pelos preços imbatíveis. Foi avassalador. O desemprego começou a subir, sobretudo nas camadas menos qualificadas. A China fazia por uma fração do custo, transporte incluído.
Durante estes anos, a inflação não foi um problema e havia crescimento. Hoje, a iminência da estagflação (preços a subir de forma violenta e um cenário cada vez mais negro de recessão a formar-se) voltou a ensombrar a economia mundial.
A pandemia significou crise, mas a procura fraca manteve os preços baixos, pelo que os bancos centrais puderam ajudar com dinheiro barato.
No entanto, em 2021, começaram a emergir fortes constrangimentos nas cadeias de fornecimentos, que começaram a fermentar inflação, num quadro de taxas de juro ainda em zero ou lá perto e com a retoma (ainda em pandemia) por garantir.
Até ao dia 23 de fevereiro deste ano, o cenário de estagflação já existe no horizonte discernível. No dia seguinte (24), a Rússia invadiu a Ucrânia e eis que o barril de petróleo foi logo aos 140 dólares, o valor mais elevado desde 2008 (chegou a 147,5 dólares nesta altura), ano de má memória e do início da grande crise financeira e da grande recessão.
O preço do gás natural incendiou-se, sendo que quase 40% do gás natural importando e consumido na Europa (UE) vem diretamente da Rússia. Mesmo com energias verdes, não vai ser fácil escapar a este embate enorme.
Depois não é só isso. Os cereais estão pela hora da morte, o comércio de muitos bens alimentares essenciais (gorduras vegetais, como óleo de girassol, foram apanhados no meio deste fogo cruzado). Entretanto, um grupo de peso de países ocidentais (liderado pelos Estados Unidos) avançou agora com sanções duras contra a Rússia. A primeira bomba comercial em plena guerra bélica.
De um lado e de outro desta barricada, algo parece ser certo: o mundo caminha outra vez a passos largos para uma recessão (pode ser prolongada e cavada), ao mesmo tempo que luta contra uma inflação cada vez maior. Depois do choque inicial, a estagflação surge cada vez mais definida. Mas o mundo mudou bastante desde 2008.
This time is different
Na Europa, a inflação andou calmamente pelos 2% até finais de 2007. Foi o tempo mais relaxado para os bancos centrais. Nesta perspetiva, o BCE, que nasceu em 1998, teve uma infância relativamente fácil, feliz. Não precisou de grandes sacrifícios e contorcionismos e baterias de medidas para ancorar a inflação perto dos 2%. Nem lutas internas entre banqueiros centrais do norte (avessos a grandes cortes nos juros e a deixar a inflação livre) e do sul (mais favoráveis aos juros baixos e tolerantes a uma inflação bem maior que 2%).
Ainda nesse tempo, as coisas eram realmente diferentes. É bom de recordar que os inputs produtivos (desde matérias-primas, a chips e semicondutores) made in China e Índia permitiram aos grandes conglomerados industriais do Ocidente lucrarem muito e bem. Carros bons e baratos, telemóveis ao preço da chuva, crédito para consumir e comprar casas e outras coisas, algumas aventuras.
Os novos consumidores (os que mantiveram o emprego, claro) também estavam bastante satisfeitos, por cá, pelo Ocidente. Enquanto a economia cresceu a crédito fácil e pouco criterioso, foi bom. Parecia bom.
Mas depois, aconteceu o primeiro grande choque económico global deste milénio. Durante anos e anos, mercados financeiros desregulados e comportamentos criminosos rebentaram com um, dois, muitos bancos. E muitos bancos grandes.
Começou no Lehman Brothers e a ordem financeira mundial praticamente ruiu, mas muitas e elevadas perdas foram socializadas e o contágio apanhou fortemente os países.
Os contribuintes ainda hoje estão a pagar essa fatura em muitos lugares do mundo. Isto aconteceu e em 2008, a China e a Índia começaram a reverter para si os primeiros e avultados ganhos dos negócios.
A classe média emergente e gigante chinesa (e de outras nações emergentes) começou a viver de outra forma: compraram carros maiores, mais combustíveis, casas melhores, mais importações do modo de vida ocidental, a procura disparou.
O terceiro grande choque petrolífero haveria de acontecer em 2008. A crise financeira e a recessão subsequente haveriam de rebentar com o resto.
Armas e dívidas
Só que desta vez é diferente. Em 2008, os Estados não carregavam tanta dívida como agora. Nem de longe. Para sair sem amputações e ferimentos graves desta estagflação que se está a desenhar, é preciso mais dívida para colmatar o crescimento e o emprego que vão estar em falta. Se a guerra acabasse rapidamente, a situação não pareceria assim tão catastrófica. Mas não é nada esse o cenário mais óbvio e plausível.
Desta vez é diferente porque em 2008 a dívida externa do conjunto da zona euro equivalia a 110% do produto interno bruto (PIB) e hoje já vai em mais de 130%. É diferente porque os governos (os contribuintes), as entidades que ajudaram a pagara a crise financeira de 2008 e de 2010/2011 (soberana) também estão muito mais carregados de dívida.
Nas vésperas da derrocada do Lehman Brothers e da queda em dominó que se seguiu pelo mundo fora, a Europa tinha o equivalente a 62% do PIB em dívida pública.
Hoje, enfrenta os efeitos devastadores da nova guerra e da pandemia ainda não resolvida com um fardo de endividamento de 93%.
Aqui, falando de números, podemos sempre recordar a posição ultra delicada de países como França (116% de dívida), Itália (155%), Portugal (quase 130%) ou Grécia (cerca de 207%).
Como dizia, com certa ligeireza, um antigo primeiro-ministro português, José Sócrates, antes da bancarrota e até para desviar a atenção do descalabro: "A dívida é para se ir pagando". No entanto, uma dívida enorme implica juros exorbitantes todos os anos, o que retira margem de manobra e alcance à despesa pública, ao mesmo tempo que puxa pela carga fiscal.
E aqui estamos, novamente. A testar os limites da despesa (produtiva e para quem precisa e contribuiu) e da receita de impostos, que parece a de um país rico. Só que não.