"Devia haver um IRC diferenciado para as empresas que sobem salários e ajudam a economia"

Alexandre Meireles começou a carreira no grupo Mota-Engil, onde coordenou a divisão de energia entre 2009 e 2011, antes de entrar no empreendedorismo, nos projetos pessoais e familiares e está há dois anos à frente da Associação Nacional de Jovens Empresários. Na ANJE, assumiu como compromisso de mandato o reforço do papel da associação "como hub de referência do ecossistema empreendedor" entre os mais de 5 mil associados. A associação quer contribuir para a criação de novos negócios, capacitação do tecido empresarial, promoção da inovação e transformação digital para a indústria 4.0.
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Dois anos depois, que balanço faz do mandato à frente da ANJE?
Tomámos posse umas três semanas antes da pandemia e tínhamos essas bandeiras, que conseguimos ajustar. A ANJE teve um papel importantíssimo na transição digital, de apoio ao tecido socioeconómico, ao negócio de baixa tecnologia. Já conseguimos apoiar 1800 empresas na capacitação digital de empresários e colaboradores. Outra conquista foi o acordo de bandeira que fizemos no têxtil, com o Afreximbank, uma multilateral africana, para promover a indústria do vestuário e têxtil desse continente em Portugal. No âmbito desse acordo, trazemos ao Portugal Fashion 40 designers africanos por ano; o que eles procuraram em Portugal foi manufatura para a indústria têxtil. E mais recentemente, no fim de novembro, assinámos na África do Sul um memorando de entendimento em que a ATP é nossa parceira técnica, para desenvolver um cluster têxtil em África que crie emprego. O balanço do mandato é este: aposta em transição digital e capacitação dos associados e esta ligação ao Portugal Fashion, que é um dos nossos projetos âncora e ainda está a meio caminho, mas que gostava de concretizar até fim do mandato.

O empreendedorismo em pandemia abrandou o ritmo?
As pessoas tiveram de se adaptar à nova realidade, mas depois da paragem inicial da economia e da adaptação necessária as coisas começaram a levar o seu rumo. Sabemos melhor lidar com o vírus e a normalidade tem voltado, dando espaço ao empreendedorismo. Portugal tem feito muito bom trabalho no setor tecnológico, já temos sete unicórnios e nesse tipo de empreendedorismo estamos bem, a crescer e a previsão é que continue assim. Mas empreendedorismo não é só criar a própria empresa, é importante quem trabalha para outros também ser empreendedor na empresa onde está. Esse espírito manteve-se até pela reestruturação de negócios que houve com a covid.

Mas pode comparar-se o empreendedorismo jovem hoje com o ímpeto de há dois anos?
Não tenho estatísticas, mas se fizermos a comparação do setor tecnológico temos mais unicórnios e mais empresas a caminho de o serem, logo está a correr bem. O empreendedorismo está muito ligado a taxas de desemprego mais altas e havendo emprego hoje, na parte de criação do próprio emprego é natural que decaia um pouco. Não vejo isso como negativo, baixo desemprego é um ótimo indicador.

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É mais difícil ser empreendedor em Portugal do que noutros países? Isso pode levar o nosso talento a emigrar?
Ser empreendedor é sempre difícil, desde logo por ter de se lidar com o risco, estar preparado para falhar. A maioria das empresas, ao fim do primeiro ou segundo ano desaparece.

E não fica com um selo negativo?
Sim, a cultura em Portugal torna mais difícil o empreendedorismo. Noutros países mais virados para esta vertente é mais natural a falência: tentou, fez, não correu bem, arruma a casa e tenta outro projeto. Cá ainda temos dificuldade em lidar com esse ponto e isso dificulta a vida ao empreendedor.

Na banca já há essa convicção?
Não. A banca portuguesa ainda não está preparada para apoiar as jovens empresas. E não tem esse critério de risco. Mas talvez nem tenha de ter, talvez não seja o papel da banca tradicional; faltam é mecanismos de capital de risco mais virados para dar esse apoio. E o Banco de Fomento tem aí um papel.

E não está a cumpri-lo?
Não sei quantos anos tem o tema, mas são muitos... agora parece que finalmente arranca e apoiará as empresas. O Banco de Fomento tem um papel fundamental no apoio ao empreendedorismo e às empresas que sejam criadas. Precisamos disso.

O INE diz que a taxa de sobrevivência das empresas com dois anos nos tempos da troika era de 45%. Em 2015, subiu para 60% e caiu em 2019 para 54%. Acredita que a pandemia fará aumentar o insucesso empresarial?
Houve setores muito atacados pela pandemia, cuja taxa de sobrevivência é complicada. A aviação fechou completamente, não recebemos turistas, o comércio, a restauração... foi inevitável. Mas se há um ano estava muito preocupado com setembro de 2021 e o fim das moratórias e dos apoios ao lay-off, até foi uma surpresa agradável. Estamos quase com pleno emprego e mesmo das moratórias as empresas fizeram uma transição minimamente suave. Imaginava o cenário bem pior, mas há setores muito afetados que têm problemas. O governo deve continuar atento aos que tiveram quedas abruptas de faturação.

Antecipa ainda uma grande vaga de falências nesses setores?
Pode acontecer... talvez não tão grande quanto se imaginava há um ano, mas há muita incerteza. A inflação é um tema complicado, a crise das matérias-primas, e 2022 e 2023 ainda têm risco. E temos ainda a questão da covid, que parece estar a passar mas há um ano também se dizia que estava a acabar... Isto continuará a ter um papel fundamental no que acontecerá. Se a pandemia estiver controlada a partir do segundo semestre, a economia irá crescer.

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O Banco de Portugal disse nesta semana que as empresas em risco potencial aumentaram em todas as regiões no último ano.
As empresas endividaram-se e estão com mais dificuldades do que antes da pandemia, mas se as coisas correrem bem não teremos problema de dimensão tão grande quanto se antecipava.

Um indicador dessas dificuldades são quotas em atraso na ANJE?
Não temos muitos... houve atrasos, é natural, as pessoas fizeram escolhas. Mas não sentimos atraso significativo. E os sócios optaram por pagar, o que me deixa contente.

Tem reclamado justiça célere, menos burocracia, nomeadamente nos fundos europeus, e uma carga fiscal mais baixa para ajudar as empresas. Que medidas são prioritárias? Baixar o IRC?
A economia portuguesa tem um problema de base que são os salários baixos e isso é influenciado pela carga fiscal, pelos custos de contexto e por empresários socialmente menos responsáveis. Quanto à carga fiscal, havendo margem orçamental, seria sempre positivo ver o IRC descer, mas o que defendemos é que numa sociedade do século XXI as empresas podiam pagar IRC diferenciado: as que contribuem positivamente para a economia devem pagar o mesmo que as que não ajudam? Defendemos um IRC diferenciado, por exemplo, para apoiar as empresas que optem por subir salários. A descarbonização tem grandes custos sociais e para as empresas e o IRC pode e deve ser usado para ajudar quem está a fazer essa transformação. E aí até se calhar é mais fácil a questão da tributação autónoma. Mais importante do que baixar a taxa de referência - ou ainda que se baixe -, é que os governos premeiem empresas que sobem salários, que têm um papel na descarbonização e ajudam a economia.

Essa descriminação positiva podia também ser regionalizada?
Poderia. Seria interessante para ajudar a resolver o problema da desertificação do interior; e até já se faz em alguns casos, as câmaras têm alguma margem para pôr ou não derrama às empresas sediadas nos seus municípios.

Mas não criaria mais confusão num regime fiscal já complexo?
Sim, sempre que falamos nisto a difícil implementação é a questão. Mas precisamos de fazer diferente. A máquina fiscal, a máquina do Estado, tem de ser digitalizada e ganhar eficiência e eficácia. O PRR é a altura para fazê-lo e perceber como se conseguiria esta majoração. Não haveria empresas penalizadas, mas as que fizessem bem pagavam menos. E há condições para o fazer, talvez não num ou dois anos, mas para começar a trilhar esse caminho.

O gabinete de crise covid da ANJE continua operacional?
Sim, mas com menos intensidade. No início foi o grande boom, com a questão dos lay-offs, a medida APOIAR, etc. Lá está, o governo faz coisas demasiado burocráticas e os empresários perdem-se. Os financiamentos, os avales pessoais, os lay-offs dominaram as dúvidas no ano de 2020, mas agora os empresários já estão familiarizados e tem havido sobretudo pedidos de novos negócios.

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Anunciaram há um ano a pareceria com a rede global de empreendedorismo da Google, a Youth Business International. Que balanço faz desta pareceria?
Essa é uma área em que temos feito um enorme trabalho e a equipa da ANJE está de parabéns. Vamos em 1800 empresas, mas queremos 3000 até ao fim do mandato. Essa parceria correu muito bem, tal como outras com as câmaras para a transição digital, com a Microsoft fizemos também um programa em que o DV participou nesta semana, com a Altice... E tudo isto é fundamental para criar condições para os nossos associados vingarem. Tem sido nossa bandeira fazer parcerias com tecnológicas de referência para nos ajudarem a capacitar digitalmente os empresários, que é um ponto fundamental no que vem aí.

Em 2022, as empresas continuarão a precisar de ajuda do Estado?
Sim, principalmente por causa da dívida, é importante olhar para isso e suavizar a transição em setores muito afetados pela pandemia. Depois dependerá sempre de a covid ser ou não erradicada. O verão é muito importante para a nossa economia e se for de portas abertas, as empresas vão precisar menos. Mas o governo tem de se manter atento ao que possa vir a ser necessário.

O pagamento de impostos em prestações mensais iria facilitar a tesouraria das empresas?
Tudo ajuda, e o apoio à tesouraria ainda mais, porque as empresas foram muito prejudicadas e tendo de começar a pagar dívida acumulada em pandemia é importante haver mecanismos para os setores mais afetados mitigarem problemas.

O elevado número de pessoas em isolamento está a trazer problemas a vários setores onde o trabalho remoto não é uma possibilidade. Devia haver apoios aí?
Temos cerca de um milhão de pessoas em isolamento e isso traz problemas às empresas, sobretudo as que têm de parar, logo não faturam. Esse é o tipo de apoios que devia ser mantido, porque não há como contornar a falta de pessoas.

No teletrabalho faz sentido obrigar as empresas a pagar as despesas dos trabalhadores?
Faz sentido que haja um acordo e que se repense todo este modelo de teletrabalho - se as pessoas têm mais custos em casa, faz sentido que sejam apoiadas.

Mas faz sentido, quando o Estado não cumpre essa regra?
Claro que não, mas quem está mal é o Estado, que devia pagar aos seus funcionários e dar o exemplo. O que não fará grande sentido é alguém que vai trabalhar para casa e tem aumento de custos de luz ou internet estar a pagar para trabalhar.

Já aqui falou do apoio da ANJE à transição digital para empresas de baixo perfil tecnológico. Qual é a maior falha que encontra?
Temos aqui dois pontos: os empresários e os colaboradores. E os problemas são distintos. Há falhas na formação de base dos nossos empresários, como as há na dos colaboradores. Temos de formar mais as pessoas. Temos assistido a um debate sobre os países de Leste que nos passaram, e em todos eles o nível de escolaridade médio é o dobro do nosso. Nós temos 50% da população com o secundário - e 30% com licenciatura - e esses países estão nos 90%. Isto é a base do sucesso de uma economia e de uma sociedade moderna, a educação e a formação. Temos um défice de formação que é preciso resolver, é preciso estratégias. Há muitas falhas na transição digital: basta ver que só 50% das empresas têm presença digital e nas que atualizam conteúdos a taxa anda pelos 20%. Isto tem de se debater, é preciso uma estratégia para o nossos sistema educativo, que é um dos problemas estruturais da nossa sociedade. De resto, a ANJE tem tido aqui um papel, com projetos muito direcionados que têm tido boa aceitação, as pessoas saem a perceber que adquiriram competências novas.

Mas estamos a falar de formação específica em contexto de trabalho ou na escola, através das TIC?
Ambas. Temos uma geração nos 60 anos que não teve essa formação - há que pensar em estratégias de conversão. E nos mais jovens há que cuidar que não têm os problemas das outras e para isso é preciso programas adequados. Nós temos excelentes exemplos, no setor tecnológico e das startups. Um dos grandes segredos foi a universidade pública, que forma engenheiros de topo e atrás desse talento vieram as empresas estrangeiras. O salto que Portugal deu no têxtil foi quando começou a formar engenheiros têxteis, o setor começou a ter skills para se diferenciar. E definitivamente temos de deixar a política de baixos salários. Nestes setores, as pessoas saem com boas formações e são bem pagas. Temos de deixar de acreditar que a economia de baixos salários é boa para o nosso país.

O PRR com vocação para a transição digital está a pensar nestas pequenas empresas?
Podia ter sido mais virado para o setor privado, mas agora o mais importante é que seja transparente e bem implementado. Eu disse há um ano que precisávamos de uma secretaria de Estado da bazuca e continuo a dizer que isso é importante. É uma oportunidade única para reformar a economia portuguesa para as próximas dezenas de anos. Esse dinheiro tem de ser bem implementado. E temos de saber que empresas foram apoiadas, sem se cometer os erros e atrasos do PT2020. Quando falo em custos de contexto, dou um exemplo: tivemos um projeto do PT2020 na ANJE que atrasou seis a oito meses e tivemos de recorrer à banca, o que significou custos de 4%/5% ao ano. Isto prejudica as empresas. Não sei se há muitos funcionários públicos ou não, mas é preciso que a máquina do Estado seja capaz de dar resposta aos projetos apresentados para não corrermos o risco de chegar ao fim do PRR e termos de devolver dinheiro. Seria trágico.

Os jovens empresários já estão mais virados para a digitalização e sustentabilidade?
Claramente. Até a geração abaixo da minha, que já fiz 40 anos, tem um perfil diferente, são pessoas mais politizadas, com grande preocupação ambiental, em deixar um futuro que é para eles mesmo. E tecnológica e digitalmente são muito mais avançados. É preciso dar valor à academia: o curso de engenharia hoje não tem nada que ver com o que eu concluí em 2006, evoluiu brutalmente. A universidade portuguesa é uma referência, das coisas boas que temos, e os jovens saem mais bem preparados para os desafios do mercado de trabalho.

Voltando à parceria da ANJE com o Banco Africano de Exportação e Importação. Que oportunidades podem surgir aí?
Muitas. A questão do desemprego, desde logo: o ocidente e a Europa devem olhar para isso com atenção. Estamos a formar uma nova geração que não quer olhar para setores mais tradicionais - carpintaria, pintores, etc. - e precisamos de trazer e formar gente. E o continente africano pode ser uma oportunidade: em 2050 será a única região do globo em que a demografia se mantém positiva. Devemos criar condições para essas pessoas virem, criar programas de formação para os integrar e garantir que têm dignidade de trabalho, sem que se repitam episódios trágicos como os que todos vimos. A oportunidade de África no têxtil, que estamos a trabalhar, também é muito positiva, porque o continente depende muito do exterior, importa quase tudo o que consome, e quer fazer essa transição. E identificaram-nos como parceiro de referência precisamente porque somos muito bons no têxtil. Estamos a trabalhar esse cluster com os nossos empresários em África, é um projeto a médio prazo, com todas as dificuldades logísticas e de acesso, mas que é uma oportunidade única para os portugueses apoiarem o continente.

Com prioridade aos PALOP?
A nossa parceria é com o banco multilateral, por isso não tem essa primazia, mas é óbvio que a questão da língua facilita muito. Em março, o banco vem cá ao Portugal Fashion e serão dados mais passos.

A criação da nova escola de negócios, ANJE Business School, era outro ponto na sua agenda associativa. Está a avançar, conseguirá cumprir antes do fim do mandato?
Provavelmente não nesses termos. Mas já fizemos o rebranding nos 35 anos, demos uma nova capa à área da formação da ANJE, que é historicamente boa. A academia formal, física, acho que não vamos conseguir, mas temos tido esse papel na formação para a transição digital, não na formulação física, evoluímos bastante. E temos melhores indicadores de formação e capacitação: e isso é que importa.

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