Há coisas que me perturbam. Que me angustiam, na verdade. Quando me perguntam se eu considero que o mundo está a seguir o rumo ideal, uma espécie de tsunami emocional surge em mim, instantaneamente. Só depois de refletir um pouco sobre a questão é que consigo fugir de uma certa sombra e chegar a determinadas conclusões. Parece-me haver um uso excessivo de funcionalidade em detrimento da dimensão criativa. Nesse sentido, neste Dia do Artista, vale a pena refletir sobre tudo aquilo que esta desmedida praticidade está a causar na sociedade - e nos artistas que em nós moram.
Ou nós funcionamos, ou não somos nada. Curiosamente, há pouco tempo, vi-me impedido de usar o meu telemóvel. Estava estragado, tinha caído para dentro de água. Rapidamente o descartei, porque já não funcionava, e comprei outro. Substituí-o, de forma célere. Lamentavelmente, esse pequeno incidente bastou-me para perceber que é assim que o mundo está a evoluir. Ou regredir, como preferirem.
Podemos afirmar que todos nascemos artistas? Nascemos, com certeza, seres criativos - tal e qual como as plantas e os animais, declara um grande conjunto de filósofos pensadores. Temos esta dádiva impressionante de olhar para o mundo e fantasiar sobre ele. Imaginá-lo, ouvi-lo, ler as entrelinhas de tudo, interpretá-lo. Tudo através de zonas antigas e conscientes que estão bastante fervilhantes no nosso ser e que nos permitem fazer este salto para uma dimensão extraordinária. Todos nós nascemos um pouco artistas.
Ora, mas é razoável dizer que todos nos fazemos artistas? Dificilmente. É a tal dimensão funcional, este incómodo pensamento muito associado à Medicina, à Ciência e a tudo aquilo que é estatístico e prático, que nos impede. Parece que se não arranjamos um valor funcional, não somos nada. Nem sequer artistas!
Se existe esta efeméride, é porque devemos celebrar a ideia de todos nós estarmos aptos para nos fazermos artistas, esta ideia de que somos capazes de nos construirmos e de nos relacionarmos uns com os outros, nesta sublime viagem que é a vida. É evidente que, para mim, enquanto artista, se devia incentivar mais esta exaltação de pensamentos, de fantasias que sejam capazes de criar alegorias e metáforas em relação ao mundo. Apreciar a Arte, a ironia, o saber escutar e sentir tudo aquilo que está para além das coisas. Julgo mesmo que deveria haver uma estratégia social, uma espécie de escola, que, de alguma forma, fomentasse esta dimensão artística, para que nenhum de nós ficasse estagnado à praticidade - que, pouco a pouco, faz definhar a vertente criativa com a qual todos nós nascemos. Aqueles que adotam um caminho artístico vão-se fazendo e construído na sua singularidade, na sua esfera pessoal, naquilo que é a estimulação dessa criatividade e do "fazer-se artista", em todos os instantes da sua vida. Quem, por outro lado, escolhe seguir um caminho oposto não consegue criar alegorias, nem trabalhar a sua consciência, muito menos conhecer-se.
Suspeito que esta é a questão que, no Dia do Artista, se devia evidenciar: temos a capacidade de viver numa determinada incerteza que se transforma em clareza, numa realidade paradoxal; onde tudo é extraordinário, mas também terrível, comovente, bem como triste. A Arte não é para mim a mesma coisa que é para outra qualquer pessoa. É esta ambivalência do conhecimento artístico que nos permite conhecermo-nos, conhecer a nossa atividade, o nosso estado e a nossa relação com o mundo.
Fazer-se artista é uma coisa que deveria ser, naturalmente, uma continuidade daquilo que nos foi dado no nosso nascimento. No entanto, e por infelicidade, não é esse o caminho que o mundo está a seguir. A Cultura e as Artes Performativas estão em crise. Estamos a substituir o trabalho das artes por um peculiar turismo cultural. Precisamos de cidadãos mais criativos, mais capazes de viver nesta polaridade e mais compreensivos sobre a ideia de que é possível descartarmos a excessividade da dimensão funcional.
Tenhamos uma vida mais cheia de criatividade, de paradoxos, e de capacidade de autoconhecimento e de relação com os outros. Viva o Dia do Artista!
João Garcia Miguel, encenador e diretor da Companhia João Garcia Miguel