Dias perfeitos e o valor do trabalho invisível

Dias perfeitos e o valor do trabalho invisível
Rui Oliveira/Global Imagens
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Tem estado em exibição nos cinemas um filme de WimWenders intitulado “Dias Perfeitos”. O protagonista é Hirayama, um senhor que limpa casas de banho públicas, em Tóquio. Cada manhã vemos Hirayama transportar na sua carrinha o equipamento de trabalho: um balde, um alerta de piso escorregadio, esponjas de cabo telescópico e um pequeno espelho. É com este espelhoque Hirayama verifica se a parte de trás dos sanitários ficou escrupulosamente limpa.

O trabalho de Hirayama é manual e impercetível. O mesmo sucede, aliás, com o que é descrito na obra “As invisíveis: Histórias sobre o trabalho da limpeza”, onde a autora Rita Pereira Carvalho retrata o sentimento de vários profissionais que, em Portugal, limpam escritórios e outros edifícios industriais. É também um trabalho dificilmente substituível pela inteligência artificial, tipicamente remunerado ao nível salarial mais baixo, socialmente pouco reconhecido e…essencial para o bem-estar geral. É, em suma, um bom exemplo para abordar o tema do valor económico, social e cultural do trabalho.

Para Michael Sandel, professor de filosofia de Harvard e autor do livro “A tirania do mérito: o que aconteceu ao bem comum?”, vivemos tempos em que domina a ideia de que o retorno financeiro do que fazemos reflete o valor do nosso contributo para a sociedade. Sendo assim, num mundo em que o trabalho intelectual é muito mais bem remunerado do que a generalidade do trabalho manual – desde logo porque, numa ótica de mercado, este pode ser realizado por uma grande quantidade de pessoas – quem executa trabalhos como a limpeza de casas de banho públicas, escritórios e fábricas é percecionado como trazendo menos valor para a sociedade. Esses trabalhadores são, portanto, vistos como menos merecedores de reconhecimento social. Mas o que sucederá se o trabalho intelectual se mostrar mais facilmente substituível pela inteligência artificial? Será que vai mudar o valor deste trabalho invisível?

Acresce que o trabalho não é meramente uma atividade que se realiza em troca de uma determinada remuneração, para com ela se obter o que é – ou não - necessário. É também parte integrante da identidade de cada um, ao ponto de se dizer “sou professor”, ou “sou jardineira”, em vez de “ensino crianças e jovens”, ou “cuido de jardins”. Neste caso, em que trabalho e identidade se confundem, a visão de que há trabalhadores menos merecedores de reconhecimento social rapidamente se converte na ideia de que há identidades ou pessoas menos dignas que outras. Mas será isto moralmente aceitável? Que efeito terá no sentido de equidade que sustenta as sociedades democráticas? E como reagirão aqueles que arcam com a angústia de serem considerados menos dignos?

No filme de WimWenders, a impressão que nos fica é que Hirayama quebra esta associação entre reconhecimento social, trabalho e identidade. Aquilo que o define não é a estima dos que o rodeiam nem a sua profissão, mas o brio e o cuidado que coloca no que faz, subtilmente refletidos no pequeno espelho com que verifica a parte de trás dos sanitários públicos de Tóquio.

Ana Lourenço, diretora adjunta para a Faculty e docente na Católica Porto Business School

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