Direitos de autor e IA: “É preciso criar barreiras para não cairmos num cenário de exterminador implacável”

Tecnologias como a inteligência artificial e o metaverso estão a desafiar as noções tradicionais de direitos de autor e de propriedade intelectual, exigindo uma reavaliação urgente do sistema que garante a sua proteção. Ainda não há uma solução perfeita, dizem os especialistas.
No estúdio, da esquerda para a direita, Carlos Eugénio, Patricia Akester, Bruno Contreiras Mateus e António Branco.  Foto: Mário Vasa/GI
No estúdio, da esquerda para a direita, Carlos Eugénio, Patricia Akester, Bruno Contreiras Mateus e António Branco. Foto: Mário Vasa/GIFoto: Mário Vasa/GI
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Garantir que a utilização de informação relativa à obra de qualquer autor - seja ele um escritor, um jornalista, um realizador de cinema, um cientista ou um informático, é feita de forma correta, atribuindo os devidos créditos e retorno financeiro a quem a produziu - é uma questão que nunca foi pacífica na sociedade. Para os lesados, nem sempre é simples reclamar os direitos de autor que foram instituídos em Portugal, pela primeira vez, em 1972, através do Decreto-Lei n.º 13725 (Regime de Propriedade Literária, Científica e Artística), e posteriormente adaptados às necessidades e mudanças na sociedade.

Mais recentemente, a massificação dos conteúdos digitais trouxe de novo a questão a debate, um problema que a inteligência artificial (IA) e o Metaverso vieram agigantar. Para dar resposta, a União Europeia (UE) criou as diretivas 2019/789 e 2019/790 relativas aos direitos de autor e direitos conexos no mercado único digital. Portugal transpôs a diretiva para a legislação nacional em 2023, quando já devia tê-lo feito até 2021, e, ainda assim, esta parece não ser a solução ideal para a defesa dos criadores no mundo digital, conforme explicaram ao Dinheiro Vivo os especialistas que participaram na talk “Direitos de Autor e Inteligência Artificial e Direitos de Autor e Metaverso”, que decorreu online esta semana, mas a que ainda pode assistir no site do jornal.

Num debate moderado pelo diretor do Dinheiro Vivo, Bruno Mateus, e no qual participaram Carlos Eugénio, diretor executivo da Visapress, empresa especializada na gestão de conteúdos do setor dos media, Patrícia Kester, doutorada em Direitos de Autor e Direitos da Tecnologia Digital e fundadora do GPI-IPO (Gabinete de Jurisprudência da Universidade de São Paulo), e António Branco, professor da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, especialista em inteligência artificial generativa e um dos criadores dos modelos de linguagem para a língua portuguesa Albertina e Gervásio, a grande conclusão que pode retirar-se é a de que não existe, para já, uma solução perfeita para a defesa dos direitos de autor nas plataformas digitais, nomeadamente dos conteúdos produzidos através de IA, e que esta não será fácil de encontrar.

À data de hoje, explica Patrícia Kester, “não temos solução a não ser, talvez, no âmbito da lei inglesa”. No entanto, esta lei tem uma aplicação muito limitada em termos territoriais, e “temos que lembrar-nos que o direito de autor é uma realidade territorial”, acrescenta a especialista. Além disso, aponta, na União Europeia existe uma visão distinta do próprio conceito de direito de autor que “assenta num laço profundo, quase romântico, entre o autor e obra, suportado na essência do espírito humano”. Na perspetiva da jurista, isto significa que, nos dias que correm, é muito difícil na Europa continental dizer que uma criação da máquina, ainda que seja assistida por humanos, e não puramente criada por ela, é uma obra, e se não se trata de uma obra, também não há autoria nem titularidade. “Sendo o elemento humano crucial, é fundamental a toda e qualquer noção de direito de autor”, reforça.

Boas intenções, difícil concretização

“A legislação atual tem uma excelente intenção, mas não assegura a sua concretização”, defende Carlos Eugénio. O diretor executivo da Visapress recorda a recente aprovação do Regulamento sobre Inteligência Artificial pelo Parlamento Europeu, que entrou em vigor esta semana, e que dá o período de um ano para que as empresas possam adaptar-se às novas regras. Nesta peça legislativa, diz, há dois pontos que visam salvaguardar os direitos de autor “naquilo que vulgarmente chamamos o scraping, ou seja, o varrimento dos conteúdos em ambiente digital”, explica. Esse varrimento dos conteúdos é o que permite criar uma base de dados com dimensão e qualidade suficiente para que aquilo que sai dos algoritmos de inteligência artificial tenha credibilidade quando entregue ao seu utilizador.

A questão que aqui se coloca, sublinha o responsável, é se faz sentido, ou se é suficientemente robusto aquilo que o legislador pensou como medida de proteção dos conteúdos, em ambiente digital. “E isto é transversal, ou seja, tudo aquilo que está em ambiente digital deve, de alguma forma, ter uma referência, que seja lida pelas máquinas, e que confirme se o conteúdo está ou não protegido”. A dúvida residirá, defende Carlos Eugénio, porque tecnologicamente ninguém garante que organizações que sejam usurpadoras de direitos não consigam continuar a ir buscar os conteúdos e a utilizá-los porque não há, na realidade, nada que consiga ser eficaz nessa proteção. Na perspetiva do responsável da Visapress, o que o legislador europeu está a tentar fazer é criar uma espécie de governance que permita definir um chão comum para que existam barreiras que não devem ser ultrapassadas pelos algoritmos de inteligência artificial. Sem elas, alerta, “cairíamos num cenário de exterminador implacável”.

Sendo especialista em IA generativa, e um dos criadores dos modelos de linguagem para português - Albertina e Gervásio -, António Branco tem uma visão pragmática do papel da máquina nos direitos de autor. Apesar de considerar que tudo é alvo de direito autoral, admite a sua dificuldade em atribuir este tipo de direitos às máquinas “porque nunca as vejo a trabalhar sozinhas”. Na sua opinião, os direitos de autor nas situações em que existe a intervenção de máquinas deverão ser atribuídos “a quem usou a máquina para produzir seja o que for”. A grande dificuldade estará, na sua opinião, nas questões que se levantam a jusante. E exemplifica: “Se avançar a ideia de que textos produzidos por direitos de autor, que entram no treino de um modelo de linguagem, devem ser identificados e depois ressarcidos, seja lá de que forma for, temos um problema”. Ao contrário das bases de dados, em que o conteúdo é guardado para depois ser recuperado na sua íntegra, num modelo de linguagem, tal não acontece. “O modelo de linguagem é uma rede neuronal artificial, e a rede neuronal artificial são apenas pequenos nós numa rede, portanto, não estão lá os bits que depois de reorganizados nos dão o texto, nos dão a fotografia, nos dão a obra, seja o que for”, reforça.

No caso da Albertina e do Gervásio, que são modelos de linguagem para a língua portuguesa, António Branco explica que “vão beber conteúdos escritos em língua portuguesa, seguindo as melhores práticas na literatura científica, numa abordagem que tem por base a prudência”. Ou seja, acrescenta o professor, são reunidos textos para treinar o modelo de linguagem e, dessa coleção de textos, “são excluídos casos que conseguimos perceber que implicam com direitos de autor, nomeadamente, no jornalismo ou na literatura”.

Já sobre a utilização de conteúdos por parte de grandes plataformas digitais como a Google ou o Bing, os participantes do debate acreditam que deve haver um entendimento negociado entre autores e as empresas que gerem estes agregadores. No fundo, uma gestão coletiva. Contudo, apesar de concordar que este é o caminho, Carlos Eugénio alerta: “Vão sempre existir organizações que preferem fazer acordos individuais e, por via da autonomia privada, temos que o garantir e deixar acontecer”.

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