
O crédito bancário concedido a famílias que é classificado pelos bancos portugueses como estando na antecâmara que antecede a entrada em incumprimento e malparado (falha no pagamento dentro do prazo acordado) disparou quase 13% em 2023, um dos valores mais elevados dos últimos anos, indica o Banco de Portugal (BdP) no Relatório de Estabilidade Financeira, publicado na terça-feira (28 de maio de 2024).
De acordo com a nova análise do banco central governado por Mário Centeno, o problema está essencialmente concentrado nas famílias mais pobres ou de menores rendimentos, que têm vindo a sentir cada vez mais dificuldade em honrar o pagamento das prestações ao banco.
Uma eventual degradação da economia, com aumento do desemprego e mais instabilidade política são alguns dos ingredientes detetados com "potencial" para piorar a situação, aponta a autoridade monetária portuguesa.
O referido problema -- designado de "categorias de risco de crédito stage 2 [nível 2]", isto é, as que estão no tal corredor ou antecâmara antes de entrarem, objetivamente, em incumprimento (créditos não produtivos ou NPL, cujos clientes falham no pagamento, onde se inclui também o malparado, empréstimos por pagar há mais de 90 dias) -- é cada vez maior e está a motivar preocupação junto do BdP.
O aumento deste crédito em risco de nível 2 afeta proporcionalmente mais o segmento do consumo, mas foi no crédito à habitação que a situação se degradou mais, avisa o regulador dos bancos.
“A potencial materialização de um cenário económico mais adverso, em particular com aumento do desemprego, e a manutenção de taxas de juro elevadas por mais tempo do que atualmente antecipado poderão diminuir a capacidade dos particulares para servir a dívida, potenciando uma maior materialização do risco de crédito", indica o Banco.
Ato contínuo, os bancos comerciais já estão a aumentar o nível de provisões ou cobertura por imparidades para ficarem mais protegidos face a este risco de famílias (mais pobres e de menores rendimentos), mas também de empresas mais "vulneráveis", poderem falhar cada vez mais nas prestações.
Para o BdP isso é crucial para manter a solidez atual da banca nos tempos mais adversos que podem aí vir.
"Caso se materializem condições adversas, nomeadamente na atividade económica, com implicações sobre o desemprego, poderemos assistir a uma deterioração da qualidade de crédito", afirma o BdP.
Ainda que o rácio total de non-performing loans (NPL, créditos não produtivos entre eles o malparado) tenha continuado a diminuir em 2023, de 3% para 2,7% do total de crédito, a verdade é que parece haver um problema mais grave em gestação.
"De forma transversal às principais instituições, o rácio de empréstimos a particulares em stage 2 aumentou 2,2 pontos percentuais (p.p.) para 10,4%, revelando a vulnerabilidade das famílias de menores rendimentos perante condições monetárias mais restritivas", alerta a instituição de Centeno.
As três categorias de crédito
É de lembrar que os empréstimos "stage 2" correspondem aos "contratos cujo risco de crédito aumentou significativamente desde o reconhecimento inicial, mas para os quais não existe evidência objetiva de imparidade", segundo define um dos maiores bancos do mercado, o BCP.
Menos arriscado é o crédito classificado como "stage 1". Este diz respeito aos "contratos cujo risco de crédito não tenha aumentado significativamente desde o seu reconhecimento inicial".
Já os empréstimos do tipo "stage 3" são considerados de má ou péssima qualidade (mais de 90 dias de atraso na prestação), estando já feridos por falta de pagamento das prestações devidas por famílias ou empresas. São contratos "com sinais objetivos de imparidade", ou seja, já existe incumprimento por parte dos devedores, segundo a classificação disponibilizada pelo BCP, no seu site.
O Banco de Portugal explica que esta dinâmica de agravamento dos créditos em risco "stage 2" "refletiu uma transferência líquida de empréstimos para categorias de risco de crédito mais elevado, nomeadamente transições de stage 1 para stage 2, que contribuiu para um aumento de 12,6% do valor bruto dos empréstimos a particulares em stage 2".
"Destes destacaram-se os empréstimos à habitação (contributo de 10,1 p.p.) tendo, neste segmento, o rácio de empréstimos em stage 2 aumentado 2,3 pp, para 9,8%". No final do primeiro ano da pandemia (dezembro de 2020), este rácio estava em 7% do total de empréstimos concedidos.
"Relativamente ao segmento consumo e outros fins, o rácio aumentou para 12,4% (+1,6 p.p.)" face aos 10,5% registados também no final de 2020.
Ou seja, embora o rácio de categoria 2, de 'quase' incumprimento das famílias, seja naturalmente maior no segmento de consumo, ele está a subir bem mais depressa na componente habitação, onde está a fatia de leão dos empréstimos concedidos.
O BdP considera que "o potencial de materialização de risco de crédito leva a que seja importante a existência de cobertura para fazer face a perdas. O rácio de cobertura por imparidades de empréstimos a particulares em stage 2 aumentou para 7,2% (+2,0 p.p.) por via do reforço das imparidades, na habitação e no consumo e outros fins".
Desemprego e turbulência política interna e externa
Além do fator desemprego, o BdP sublinha que "o efeito acumulado da manutenção de taxas de juro elevadas na atividade económica e nos custos de financiamento, juntamente com eventuais subidas dos custos de produção e perturbações nas cadeias de abastecimento, potenciará a materialização de risco de crédito, em especial nas empresas e famílias mais vulneráveis".
Alerta ainda que "o contexto geopolítico de conflitualidade e o novo ciclo político em países relevantes poderão impactar a atividade económica, tal como a persistência de condições monetárias restritivas ou com efeitos mais prolongados do que antecipado".
E, não menos importante, o governador diz que "no plano nacional, destacam-se ainda os riscos associados a um cenário de maior incerteza na condução da política económica, no quadro de um novo modelo de regras orçamentais europeias, que colocarão novos desafios à condução da política orçamental".