Dois anos de crise. 80% do brilharete do emprego assenta em trabalhos pouco ou nada qualificados

Entre o primeiro trimestre de 2022 e igual período de 2024, economia conseguiu acrescentar mais 156 mil empregos ao total nacional, mais 3%. Problema: mais de 78% (122 mil indivíduos) desta criação líquida de emprego ficou concentrada em duas profissões onde imperam baixas qualificações e baixos ordenados.
Marcelo Rebelo de Sousa, Presidente da República, em visita à Bolsa de Turismo de Lisboa, fevereiro de 2024. Fotografia: Reinaldo Rodrigues / Global Imagens
Marcelo Rebelo de Sousa, Presidente da República, em visita à Bolsa de Turismo de Lisboa, fevereiro de 2024. Fotografia: Reinaldo Rodrigues / Global ImagensReinaldo Rodrigues / Global Imagens
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Cerca de 80% da criação de emprego dos últimos dois anos, em Portugal, isto é, desde que começou a crise inflacionista (acelerada pela guerra da Rússia contra a Ucrânia), é explicada pela criação de postos de trabalho pouco ou nada qualificados, profissões onde o salário médio líquido vale apenas 800 euros ou menos.

A "resiliência" e a "força" do emprego, que tantas vezes tem sido destacada por políticos e decisores, é afinal pouco rica em qualificações e está associada a salários normalmente muito baixos, o que também pode ajudar a explicar a baixa produtividade da economia portuguesa.

De acordo com cálculos do Dinheiro Vivo (DV) a partir dos novos dados do inquérito ao emprego do Instituto Nacional de Estatística (INE), ontem divulgados, o emprego nacional voltou a superar a marca dos 5 milhões de pessoas e, ato contínuo, a bater um dos valores mais elevados de sempre neste primeiro trimestre do ano.

Segundo o INE, a economia portuguesa voltou a registar uma criação de emprego aceitável, tendo somado mais 90,2 mil postos de trabalho, uma subida do emprego total de 1,8% face ao primeiro trimestre do ano passado. Atualmente, a economia tem mais de 5 milhões de pessoas empregadas, das quais 85% (4,3 milhões) são trabalhadores por conta de outrem.

No entanto, quando se olha para os últimos dois anos, o período que coincide com a crise inflacionista, que a economia conseguiu atravessar relativamente bem, segundo alguns analistas (Mário Centeno, o governador do Banco de Portugal, defende que a economia conseguiu evitar a recessão por manteve o emprego a crescer), há detalhes que podem suscitar preocupação, pois parecem ser ameaças ao potencial da economia e uma retoma mais forte num futuro próximo.

Desde o primeiro trimestre de 2022 até ao final do mesmo período deste ano, a economia conseguiu acrescentar mais 156 mil empregos ao total nacional, uma criação de emprego superior a 3%.

Problema: mais de 78% (122 mil indivíduos) desta criação líquida de emprego ficou concentrada em duas profissões onde imperam baixas qualificações e baixos ordenados.

De acordo com os dados do INE, o grupo "trabalhadores dos serviços pessoais, de proteção e segurança e vendedores" liderou, com mais 68,9 mil postos de trabalho criados. O salário médio mensal líquido nesta profissão (empregados por conta de outrem) é de apenas 834 euros, o terceiro mais baixo na lista de profissões definida pelo INE, no primeiro trimestre.

O salário médio da economia é bem superior, cerca de 1090 euros. O salário mínimo nacional (bruto, sem o desconto de 11% para a Segurança Social) está hoje nos 820 euros.

Em segundo lugar da criação de emprego desde o começo de 2022, surge o grupo dos "trabalhadores não qualificados", com mais 52,7 mil postos de trabalho criados. Mas estes são os mais mal pagos de todos. O salário médio líquido deste conjunto profissional ronda 685 euros por mês, valor que fica muito abaixo da média nacional e até do ordenado mínimo.

Nestes dois anos marcados pela crise da inflação e pela subida em flecha dos juros do Banco Central Europeu (BCE), que iniciou o aperto monetário em meados de julho de 2022, as baixas qualificações parecem dominar a dinâmica geral do mercado de trabalho, mas é de destacar, em contrapartida, que o segundo grupo profissional que mais contribuiu para o emprego é o dos "especialistas das atividades intelectuais e científicas", onde foram gerados mais 52,2 mil postos de trabalho.

Seja como for, percebe-se que a economia está a manter-se à tona porque continua a criar emprego, mas em setores também eles associados a qualificações mais baixas.

Ontem, o INE também divulgou dados que permitem concluir que a criação de emprego nestes dois anos em análise foi liderada e dominante na construção e no setor "alojamento, restauração e similares", ambos muito ligados e puxados pelo turismo.

A atividade "alojamento, restauração e similares" foi responsável por 38 mil novos postos de trabalho (em termos líquidos); a construção por mais 36 mil.

Os dois setores juntos representam quase metade da criação de emprego desde o início de 2022.

Desemprego sobe

Apesar da força no emprego, o mercado de trabalho começa a emitir sinais de menor vigor, sobretudo ao nível do desemprego.

Embora em termos homólogos, a taxa de desemprego e o contingente dos desempregados estejam a cair, entre trimestres (portanto, face ao final do ano passado), o INE nota que o número de pessoas oficialmente sem trabalho (apesar de terem procurado e estarem disponíveis para aceitar um emprego a tempo interiro) aumentou quase 4%, para 646 mil casos.

A taxa de desemprego acompanhou, claro, representando agora 6,8% da população ativa. Estava em 6,6% no final do ano passado.

Vânia Duarte, economia do gabinete de estudos BPI Research, considera que "a robustez do mercado de trabalho deverá continuar a ser um fator de suporte ao crescimento económico em 2024, mas com menos vigor".

"De facto, o emprego deverá continuar a evoluir de forma positiva este ano, mas a um ritmo mais lento do que os 2% registados, em média, nos últimos três anos, uma dinâmica explicada pela desaceleração da economia em 2024, a incerteza (em termos económicos, financeiros e geopolíticos) e os custos ainda elevados", considera a analista numa nota.

"Ainda assim, o contexto continua positivo, o que poderá continuar a impulsionar o crescimento da população ativa (explicado pelos fluxos migratórios positivos), que acabou por ter um comportamento mais positivo do que o esperado pelo BPI Research no primeiro trimestre de 2024", acrescenta a economista.

Mas como o desemprego deu este solavanco, "é provável que tenhamos que rever ligeiramente em alta a taxa de desemprego projetada para 2024 (atualmente em 6,7%)".

Quanto ao emprego, a economista nota que "o total de pessoas empregadas superou os 5 milhões, ou seja, é o valor mais elevado desde o quarto trimestre de 2008" e que "a recuperação face ao pré-pandemia é expressiva, com mais 233.800 postos de trabalho do que no final de 2019 (+4,9%)".

Outro aspeto relevante nos dados do INE "prende-se com a criação de emprego a acontecer por via de contratos sem termo (face a uma queda do emprego em contratos precários) e a tempo completo", conclui a analista do BPI.

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