Domingos Soares Franco reforma-se, mas promete um Moscatel para os 200 anos da José Maria da Fonseca

Quadraginta é 40 em latim e dá nome à trilogia de vinhos (um tinto, um branco e um Moscatel de Setúbal) com que o enólogo se despede após quatro décadas de intensa criação vinícola.
Domingos Soares Franco reforma-se, mas promete um Moscatel para os 200 anos da José Maria da Fonseca
Foto: REINALDO RODRIGUES
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Foi no jantar que Domingos Soares Franco organizou em finais de março na José Maria da Fonseca para oficializar a reforma que, quase a acabar, veio à conversa a questão da antiguidade do Moscatel de Setúbal. Enquanto se bebia um Quadraginta Moscatel de Setúbal 1998, da trilogia de despedida que inclui ainda um tinto e um branco, o enólogo mencionou uma carta de vinhos de um provável banquete dos Cavaleiros da Ordem de Malta, há mais de 200 anos, onde vinha mencionado um Setúbal. “Um Setúbal, não sei se um moscatel, mas pode muito bem ser”, disse-me na altura Domingos Soares Franco, que não se importa de ser tratado por DSF, como aliás a empresa familiar, a José Maria da Fonseca, usa nos rótulos de alguns dos seus mais prestigiados vinhos, criação dele. Afinal, quem, no mundo dos vinhos, não conhece a Coleção Privada DSF?

De novo em Azeitão, na sede da José Maria da Fonseca, retomo a conversa sobre a origem do Moscatel de Setúbal. “Ora, aqui temos. Um Setúbal. Está escrito Setuval. E a data, pode ler-se, é 1797”, diz DSF, mostrando-me uma cópia da tal carta de vinhos, que primeiro lhe foi dada a ver pelo pai, Fernando Soares Franco, e onde, sublinha, “são vários os vinhos generosos, portanto vinhos aguardentados”. O documento original está na Casa-Museu da JMF, o palacete que fica mesmo no coração de Vila Nogueira de Azeitão, e que está aberto a visitas, com provas incluídas. Ali estão expostas medalhas conquistadas em concursos vinícolas ao longo dos 190 anos da empresa, e muita outra memorabilia, nomeadamente a máquina que em 1868 começou a engarrafar o Periquita, o primeiro vinho português comercializado em garrafa.

“Isto da origem do Moscatel de Setúbal continua por desvendar. Já houve um colega seu, o José António Salvador, que já cá não está, que um ou dois anos antes de morrer, pediu-me ajuda para escrever sobre o Moscatel de Setúbal. Eu disse, é pá, não tenho nada escrito meu, mas tenho dois livrinhos, um escrito pelo meu tio António e o outro pelo meu pai. Entreguei-lhe, mas disse ‘se queres mais, só se fores à Torre do Tombo’. Ele foi lá e não encontrou nada. Nada estava escrito. Eu ouvi gente a falar que vem do tempo do rei D. Dinis, mas, pelo amor de Deus, quem inventou a adição da aguardente foram os ingleses. Para o vinho ser exportado para Inglaterra. Portanto, não acredito que o Moscatel de Setúbal seja anterior ao Porto, ou ao vinho Madeira. Mas há portos e madeiras muito anteriores a 1797. Madeira, sei que tenho lá em casa um de 1793”, conta DSF, a quem relembro que a 4 de julho de 1776 a Declaração de Independência dos Estados Unidos foi brindada com um madeira. Era o vinho preferido de George Washington e de Thomas Jefferson. Já o monarca inglês contra quem os americanos se rebelaram, Jorge III, fazia questão de ter a adega real aprovisionada de Vinho do Porto, que pelo menos desde finais do século XVII era exportado para as Ilhas Britânicas.

Os 40 anos de carreira oficial do enólogo, nascido em 1956, são contados entre 1980 e 2020, mas a pandemia complicou a reforma oficial. Numa entrevista há uns anos, fiquei a saber que foi um amigo americano da família Soares Franco que aconselhou os Estados Unidos para os estudos de enologia de DSF. E foi assim, há meio século, em pleno período revolucionário em Portugal, que partiu para o outro lado do Atlântico, primeiro para um colégio na Nova Inglaterra para aperfeiçoar o inglês e depois para a Universidade Davis, na Califórnia.

Regressou já formado, também muito influenciado por aquilo que testemunhou sobre a produção dos chamados vinhos do Novo Mundo, e seguiram-se décadas de dedicação à empresa, fundada em 1834 por José Maria da Fonseca, que se instalou em Azeitão e casou com uma senhora da família Soares Franco. A filha do casal, Sofia, casada com um famoso constitucionalista da época, Henrique da Gama Barros, depois de herdar o negócio dos vinhos vendeu-o a uma prima direita. E, assim, a contagem da família vai agora na oitava geração dos Soares Franco, sendo que hoje é já a sétima geração que assume o comando, representada por Francisco, António Maria e Sofia, depois da reforma de DSF e do irmão António Soares Franco. Francisco é um dos cinco filhos de DSF. António Maria e Sofia são seus sobrinhos.

A conversa com o enólogo flui e várias vezes faz menção ao pai e ao tio, António Porto Soares Franco, ambos presentes na sala através de retratos pendurados na parede. “Aprendi muito com eles. Lembro-me de o meu pai dizer nunca esqueças as tuas raízes, mas olha sempre para a frente. E tentei sempre estar na crista da onda. Gosto de criar coisas novas, de inovação”, sublinha DSF. Por isso calcula que terá feito centenas de experiências, mas vinhos colocados no mercado são certamente umas dezenas, “talvez meia centena”, diz, puxando pela memória.

Na Colecão Privada há já o Moscatel de Setúbal Roxo, o Moscatel de Setúbal Armagnac, o Moscatel de Setúbal Cognac ou o Moscatel de Setúbal Sole, mas DSF garante que este novo Moscatel de Setúbal Quadraginta 1998, que tem Cognac e Armagnac, duas aguardentes francesas de exceção, vai surpreender. E já agora, de onde vem o nome Quadraginta para esta trilogia? “Foi um amigo meu, advogado, que sugeriu e eu gostei logo. Quer dizer quarenta em latim. Soa bem, não soa?”, responde, por entre risos, no estilo descontraído que se tornou uma marca pessoal.

Voltamos à velha carta de vinhos do tempo dos Cavaleiros em Malta. A Ordem foi criada em Jerusalém, há mil anos, mas quando os Cruzados foram expulsos do Médio Oriente pelos exércitos árabes, os cavaleiros instalaram-se em Rodes, até que Carlos V, imperador sacro romano germânico e rei de Espanha, lhes cedeu no século XVI Malta, uma pequena ilha mediterrânica que pertencia à Coroa de Aragão. Malta transformou-se numa fortaleza da Cristandade, resistindo aos assaltos do Império Otomano, e teve três portugueses entre os seus grão-mestres, o mais célebre dos quais Manoel de Vilhena, no século XVIII, que dá nome ao Teatro Nacional de La Valetta. Portanto, os vinhos portugueses seriam bem conhecidos na ilha e não surpreende que surjam no jantar de 1797, curiosamente realizado apenas um ano antes de Napoleão Bonaparte conquistar Malta e acabar com a governação de mais de dois séculos da Ordem.

“Na carta estão vinhos franceses, italianos, gregos, espanhóis e portugueses. Até o húngaro Tokaj. Eles apreciavam bons vinhos e bebiam xerez, porto e madeira. Entre os vinhos generosos, também deviam beber Moscatel de Setúbal, mas disso, claro, não há certeza”, afirma DSF, que confessa esperar que algum historiador se interesse pelo tema e investigue. O que tem a certeza é que ao contrário do que acontecia no Douro e na Madeira, ali por Azeitão não se conhecem famílias britânicas a produzir vinho. “Quem criou o Moscatel de Setúbal terá copiado os ingleses”, sublinha. Usaram uma casta que havia em Azeitão, o Moscatel de Alexandria, e interromperam a fermentação adicionando aguardente, tal qual se faz com os famosíssimos vinhos do Porto e da Madeira. Se a casta veio do Egito ou da Grécia é outra história, com o enólogo a explicar que “o vinho terá surgido na Geórgia, há oito mil anos, mas a vinha e a produção de vinho depressa se espalhou por todo o litoral do Mediterrâneo. Os fenícios, que eram do Líbano, faziam muito comércio de vinho e há no fundo do rio Sado muitas ânforas a testemunhar essa época”.

A José Maria da Fonseca tem uma grande diversidade de produtos, alguns de vasta popularidade como o Periquita e o Lancers. Também o Alambre, o mais acessível Moscatel de Setúbal engarrafado pela empresa de Azeitão, é um caso de grande sucesso, mas, como conta DSF, “durante muitos anos não tinha esse nome, nem sequer tinha um nome. Era simplesmente o Moscatel de Setúbal da JMF. O mais antigo Moscatel que temos é uma garrafa de 1880. Mas com tantos concorrentes a surgirem, o meu pai pensou que era bom um nome. Alambre é uma área na Arrábida, que nem sequer dá para plantar vinhas. Aquilo é a pique. Terra argilosa”.

Depois dos estudos na América - a qual vai visitando em busca de novidades no mundo dos vinhos, já não na Califórnia, mas sim ao estado de Washington, onde diz que se fazem maravilhas -, DSF regressou a Portugal e ajudou a dar “o pontapé de saída em termos de vinhos neste país”, reivindica. Um “pontapé de saída” que foi dado por ele e mais seis enólogos, que foram convidados de honra para o jantar de lançamento da Trilogia Quadraginta. “Não foi homenagear-me a mim próprio o objetivo do jantar, porque eu não sou Napoleão, que se coroou a ele próprio. Eu quis mostrar o que é que foram os meus 40 anos. Criar o tipo de vinhos que eu acho que é para aí que o consumidor vai com calma, vinhos com subtileza, finesse, elegância. E quis homenagear os outros pioneiros. Estou a falar do Anselmo Mendes, do José Maria Soares Franco, meu primo, do João Portugal Ramos, do Nuno Cancela de Abreu, do João Nicolau de Almeida, do Paulo Hortas. Nós os sete somos enólogos de formação. Anda aí muita gente que estudou outras coisas. E depois voltaram-se para a enologia, mas não estudaram a enologia como nós”.

Sobre a trilogia agora lançada, DSF explica que o Quadraginta Tinto 2017 é composto por Touriga Francesa, Trincadeira e Castelão Francês e que o Quadraginta Branco 2021 combina Riesling, Antão Vaz e Alvarinho. Quanto ao Quadraginta Moscatel de Setúbal 1998, com aguardentes das regiões francesas de Cognac e Armagnac (Conhaque e Armanhaque, em português), e estágio de duas décadas em cascos de madeira, é uma homenagem de DSF ao mais nobre dos vinhos da região de Setúbal e da Arrábida, menos conhecido que outros vinhos generosos portugueses, mas com tanta personalidade como um porto ou um madeira. E também muito viajado, como testemunha os torna-viagens, barris de Moscatel de Setúbal que eram enviados para o Brasil para serem vendidos à consignação e que em alguns casos regressavam diferentes pelo tempo no mar e pela passagem do Equador.

Trilogia de despedida? Domingos Soares Franco diz que está reformado, mas não está parado. E promete uma surpresa para 2034, quando a José Maria da Fonseca, fundada no ano em que terminaram as Guerras Liberais e D. Maria II subiu ao trono, celebrar 200 anos. “Sou fiel ao conselho do meu pai, constrói para o futuro. Invento coisas para as novas gerações”, afirma DSF. E vai ser um moscatel? “Sim, vai. Está feito. E vai ser completamente diferente”, promete.

Domingos Soares Franco reforma-se, mas promete um Moscatel para os 200 anos da José Maria da Fonseca
“Beber um Moscatel de 1880 é único. É um vinho que aguentou cento e tal anos à nossa espera”

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