Em 2016, em plena explosão do setor do turismo em Portugal, Fernando Medina, o presidente da câmara de Lisboa, insurgiu-se contra a ideia de que haveria turismo a mais, de que essa onda estaria a danificar a qualidade de vida dos residentes e dos serviços públicos.
Em 2021, o jogo inverteu-se: se não havia turismo a mais, agora é certo que há muito pouco para a forma como a economia estava organizada. Em 2020, o país experimentou vários meses de pura "interrupção" no turismo. E daqui para a frente, tudo vai ser diferente. A bolha pode ter rebentado. E isso é um bloqueio gravíssimo, tendo em conta a forma como a economia e o emprego estão estruturados, lembram vários economistas.
Até 2019, Portugal viveu um tempo de expansão inédita e histórica alicerçada no turismo (que puxou por muitas outras atividades, como os eventos internacionais, a reabilitação do edificado nos centros históricos degradados, pelo alojamento local e o setor da hospitalidade mais clássico, pela restauração, pelos transportes, nomeadamente a aviação comercial).
"Não sei o que é ter turistas a mais", "esse conceito não existe, não tem sentido", disse Medina na Cimeira do Turismo Português, que decorreu em setembro, há quatro anos.
António Costa, o primeiro-ministro, apoiou o autarca - que será um dos seus possíveis delfins na sucessão na liderança do PS. O plano económico do país passaria sempre por aí, pelo turismo como plataforma de um Portugal mais atrativo ao investimento e mais competitivo. "O que tem sido feito em Lisboa, nos Açores ou no Algarve é o que temos de fazer em mais sítios para que tenhamos cada vez mais turismo." Este "puxa pelo país, pelo comércio, pela agricultura", é "um investimento sustentável e inclusivo do nosso país", defendeu o chefe do governo na mesma cimeira.
"A vulnerabilidade"
A pandemia que devastou o ano de 2020 veio provar a "vulnerabilidade" da economia portuguesa por causa do turismo, dizem em uníssono os vários especialistas consultados pelo Dinheiro Vivo. Pior: devastou 2020 e vai atrasar mais a retoma em 2021, quando comparado com outros países desenvolvidos.
O turismo a menos é hoje algo bem real: está e vai continuar a arrasar com várias partes da economia, temem os que seguem de perto o país. Espanha e Itália debatem-se com o mesmo problema, mas como são economias maiores e mais industrializadas, talvez recuperem com menos dor.
Em Portugal, as medidas orçamentais muito potentes para segurar postos de trabalho (caso do lay-off simplificado) conseguiram talvez adiar a destruição inevitável que vai ter de acontecer. Ou que já está em marcha.
"Asfixiar as empresas com um contexto fortemente limitativo da sua atividade causará mais desemprego e mais falências, muitas delas irrecuperáveis ou de efeitos duradouros", lamenta António Saraiva, o presidente da Confederação Empresarial de Portugal (CIP).
Mesmo com uma vacina eficaz no terreno e um fluxo significativo de fundos europeus a entrarem na economia a partir de meados de 2021 (em princípio), ninguém consegue ou quer excluir uma terceira vaga de covid-19 até à primavera. Mais uma vaga, mais medidas de confinamento. É esse o receio dos empresários e da população em geral.
Problema: os negócios e os empregos que resistiram até aqui, podem não aguentar mais uma onda dessas. E a disponibilidade orçamental do governo não parece ser suficiente (em tamanho e vontade) para aguentar a barra como no grande confinamento de 2020. As falências estão a acontecer e há mais ao virar da esquina, indicam o Instituto Nacional de Estatística e os vários barómetros que foram recentemente publicados.
Falências e despedimentos
Como referido, até ao final do terceiro trimestre, muitas empresas recorreram ao lay-off simplificado, mecanismo através do qual o Estado subsidiou uma parte grande dos salários, obrigando as empresas aderentes a manterem os postos de trabalho - ficando a maioria das que aderiram impedida de despedir até ao fim de setembro.
No entanto, muitas companhias preferiram não prolongar o statu de apoio público (o sucessor do lay-off simplificado) para poderem começar a fazer reestruturações profundas e reduções severas nos quadros de pessoal. É o que começa a acontecer agora - e um dos indicadores mais claros de que isso está em marcha são os despedimentos coletivos.
Segundo dados do Ministério do Trabalho, o número de trabalhadores que já foram afastados das empresas em Portugal continental através de despedimento coletivo ascende a 5382 casos, mais 49% do que em todo o ano de 2019.
O governo português (o Ministério das Finanças, no OE2021) inscreveu uma projeção de retoma no emprego de 1%. Mas estávamos em outubro. Em dezembro, com mais informação, o panorama parece ser bastante pior. O Banco de Portugal diz que o emprego estagna (variação de 0%), a OCDE diz que cai quase 2%. É a retoma mais fraca e com menos emprego a materializar-se.
As Finanças são elogiadas pelas agências de rating e pela Comissão Europeia por manterem o compromisso com a redução do défice de 2020 (7,3% do Produto Interno Bruto ou PIB) e a contenção da dívida pública, que é monumental e uma das maiores do mundo desenvolvido (135% do PIB no final deste ano).
BCE segura a parada
O exercício é exigente: o governo diz que vai puxar pelo investimento público em transportes e saúde e avisa que não abrirá mão na estabilidade do sistema bancário. O dinheiro público contratualizado para o Novo Banco tem de estar acautelado, apesar do chumbo no Orçamento do Estado de 2021. A despesa com restos de outros bancos privados (BPN e Banif) idem, mas com essa não há problema - passou no OE aprovado, sem indignações.
Tudo isto corre num ambiente de juros zero (ou até negativos) proporcionados pelas compras massivas de dinheiro barato por parte do Banco Central Europeu (BCE). Christine Lagarde, a presidente do BCE, garantiu há dias que vai segurar os juros em mínimos até ser necessário. Até 2022 ou 2023, pelo menos.
Mas como, para o governo, a economia pode crescer 5,4% em 2021, os pesos do défice e da dívida no PIB esbatem-se. Em dezembro, o banco central português, agora governado por Mário Centeno, veio baixar essa fasquia. O crescimento de 2021, num cenário conservador, só vai até 3,9%. A OCDE está bem mais descrente: projeta uns frugais 1,7%.
A economia ficou "mais pequena" e vai levar mais tempo a reverter os danos da pandemia, observa o ex-ministro das Finanças. O emprego destruído em 2020 só recupera tudo em 2024. O PIB vai devagar, mas mais rápido do que o mercado de trabalho. "A atividade retoma o nível pré-pandemia no final de 2022", antecipa o governador.
Portanto, a retoma em 2021 até deve acontecer, mas vem claramente ensombrada pelo turismo a menos e pela incapacidade de muitas empresas de continuar num novo regime, mais magro, pequeno, com menos deslocações geográficas, com mais desconfiança dos consumidores, com menos procura.
Pouco teletrabalho
A equipa de economistas da Moody"s, uma das agências de rating que seguem a par e passo Portugal, observa que "os setores que mais sofreram com os confinamentos são também os que mais provavelmente vão ser afetados por um ritmo lento de recuperação".
Razão: "A estrutura do emprego em Portugal, Espanha e Itália evidencia a exposição destes países a esta crise". "Têm uma proporção reduzida de trabalhadores que podem ficar em trabalho remoto [teletrabalho] e uma elevada proporção de pessoas empregadas no turismo e nos serviços", avisa.
Javier Rouillet, economista principal na DBRS, outra agência de rating que segue de perto e há muitos anos a República, reforça o alerta. "Grécia, Chipre, Malta, Portugal, Espanha e Itália são os mais vulneráveis a esta conjuntura e ao turismo por causa do impacto da pandemia. Em certa medida, isto já é evidente quando se olha para os seus desempenhos macroeconómicos em comparação com os pares europeus."
Base de partida: mais pobres
O Fundo Monetário Internacional (FMI) também atualizou a sua enorme base de dados, que abarca quase todo o mundo, perto de 200 países. De acordo com um levantamento feito pelo Dinheiro Vivo, Portugal regista o 30.º maior empobrecimento por habitante, entre 2019 e 2020, num universo de 193 territórios.
Causa: a pandemia e as medidas de confinamento que empurram a economia portuguesa para a segunda pior recessão desde 1928 (quando se registou um colapso de 9,7%, segundo o Banco de Portugal).
O indicador usado para aferir o empobrecimento real dos portugueses é o PIB per capita, a preços constantes e em paridades de poder de compra, uma medida que permite comparar diretamente os países, apesar das diferenças de preços e de nível de vida.
Em Portugal, mostram os números do FMI, o empobrecimento per capita registado em 2020 foi um dos mais adversos da História moderna.
A esmagadora maioria das 193 economias sofreram o choque da pandemia, mas em Portugal foi tal o efeito que o país desceu uma posição: em 2019 era a 43.ª economia mais rica: em 2020, ocupou a 44.ª posição, sendo ultrapassado pela Polónia.
Assim, a riqueza produzida em Portugal dividida por habitante, desce, em média, mais de 31,3 mil dólares. Em euros, ao câmbio atual, dá menos 2900 euros anuais per capita; menos 242 euros de riqueza por mês. Esta quebra é a 30.ª mais pesada no universo dos tais 193 países analisados pelo FMI.
É nesta plataforma de empobrecimento que Portugal apanha o comboio de 2021. Um trilho de retoma, sim, mas pobre na criação de novos empregos e mais pobre nos salários dos que vão ser contratados.