É legal a recusa de pagamentos em numerário?

A pretensão de obrigar à aceitação do pagamento em notas e moedas remete para a temática do curso legal da moeda
JOÃO OLIVEIRA/Global Imagens
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Uma recente iniciativa mediatizada nas redes sociais, que nos exibiu uma tentativa de conjugar a reciclagem de papel cartonado pela sua utilização como contrapartida da compra de papos-secos, veio chamar a atenção do público para uma prática que o período pandémico tornou mais frequente entre nós: a da recusa de pagamentos em numerário por alguns estabelecimentos comerciais.

Insurgem-se alguns, alegadamente preocupados com uma deriva orwelliana, que se entretenha a contar o número de pães de leite e torradas adquiridas por cada cidadão, com a impossibilidade de fazerem pagamentos, de forma potestativa, em notas ou moedas.

A pretensão de obrigar à aceitação do pagamento em notas e moedas chama à colação a temática do curso legal da moeda e, concretamente, do euro.

Uma moeda de curso legal é aquela que, segundo a lei aplicável, pode ser usada para solver dívidas públicas, dívidas privadas e cumprir obrigações financeiras como pagamentos de impostos, contratos, multas ou danos legais.

Isso significa, portanto, que um credor (ou no caso, um comerciante), existindo curso legal, tem a obrigação legal de aceitar a moeda de curso legal de um país (no nosso caso, da Zona Euro) para o pagamento de uma transação ou reembolso de uma dívida.

O art.º 128.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia refere que “As notas de banco emitidas pelo Banco Central Europeu e pelos bancos centrais nacionais são as únicas com curso legal na União”, determinação que é corroborada pelo Regulamento (CE) n.º 974/98 do Conselho Europeu.

Esta determinação está ainda consolidada na Recomendação 2010/191 europeia, que precisa que, quando existe uma obrigação de pagamento, o curso legal das notas e moedas em euros deve implicar, em primeiro lugar, a aceitação obrigatória dessas notas e moedas; em segundo lugar, a sua aceitação pelo valor nominal; e, em terceiro lugar, o seu poder para cumprir obrigações de pagamento. Este ponto atesta, portanto, que este conceito de «curso legal» abrange, designadamente, uma obrigação de princípio de aceitação das notas e moedas em euros para efeitos de pagamento.

Sobre questão similar se pronunciou já o Tribunal de Justiça europeu (processos Johannes Dietrich e Norbert Häring) num caso em que estes se insurgiram contra a imposição referente à Taxa de Radiodifusão de esta ser feita por débito direto, transferência bancária ou ordem e pagamento permanente - isto é, vedando o pagamento dessa taxa em numerário.

Veio o Tribunal de Justiça decidir que as normas europeias referentes ao curso legal do Euro se opõem a uma regulamentação nacional que exclua a possibilidade de cumprir uma obrigação de pagamento imposta pelas autoridades públicas através de notas de banco em euros, desde que:

1) essa regulamentação não tenha por objeto nem por efeito determinar o regime jurídico do curso legal dessas notas;

2) não conduza à abolição, de direito ou de facto, das referidas notas, nomeadamente pondo em causa a possibilidade de regra geral, cumprir uma obrigação de pagamento através de tal numerário;

3) tenha sido adotada atendendo a razões de interesse público;

4) a limitação aos pagamentos em numerário que essa regulamentação implica seja adequada para realizar o objetivo de interesse público prosseguido; e

5) não ultrapasse o que é necessário para a realização desse objetivo, no sentido de que estejam disponíveis outros meios legais para cumprir a obrigação de pagamento.

Ora, flui daqui, sem grande esforço interpretativo, que fora o estabelecimento de regras nacionais que respeitem estas condições (como por cá ocorre nomeadamente nos artigos 40.º e 63.º-E da Lei Geral Tributária), haverá que respeitar o curso legal das notas e moedas de euro.

E, portanto, apenas nos seguintes casos poderá - aliás, deverá - ser recusado o pagamento em numerário de:

1) transações de qualquer natureza que envolvam montantes iguais ou superiores a 3000 euros, valor que sobe para 10 000 euros quando o pagamento seja realizado por pessoas singulares não residentes em território português, e desde que não atuem na qualidade de empresários ou comerciantes;

2) Para sujeitos passivos de IRC, bem como sujeitos passivos de IRS que disponham ou devam dispor de contabilidade organizada, os pagamentos de valor igual ou superior a 1000 euros;

3) impostos cujo montante exceda 500 euros.

Fora estes casos, o pagamento em numerário, entendemos que, no momento presente, não poderá ser recusado.

Paulo von Hafe, advogado na Dower Law Firm

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